O papel das redes sociais na disseminação da desinformação e as estratégias para promover informação científica confiável
As redes sociais transformaram a forma como as pessoas se informam sobre saúde. Plataformas como Instagram, TikTok e YouTube, antes voltadas para o entretenimento, tornaram-se espaços de busca por dicas, tratamentos e até diagnósticos. O problema é que, junto a conteúdos de qualidade, circulam informações enganosas capazes de interferir diretamente nas decisões médicas e na adesão a terapias¹.
Um estudo publicado no BMC Public Health, intitulado “Helpful or harmful? Navigating the impact of social media influencers’ health advice: insights from health expert content creators”, liderado pela pesquisadora Jaroslava Kaňková, da Universidade Masaryk (República Tcheca), entrevistou criadores de conteúdo com formação médica ou experiência reconhecida na área da saúde para entender como percebem o papel dos influenciadores¹. Eles apontam que esse universo tem dois lados claros: pode estimular comportamentos saudáveis, como vacinação, prevenção e hábitos de vida equilibrados, mas também espalhar mensagens simplistas ou imprecisas que confundem o público.
Para o presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), César Eduardo Fernandes, o problema vai além das chamadas “fake news”: “Muitas vezes a população não tem condições de diferenciar quais influenciadores são éticos, corretos e comprometidos com bons propósitos daqueles que não têm essas características. É justamente aí que mora o risco”, afirma. Segundo ele, mesmo quando a informação parece verdadeira, ela precisa passar pelo crivo de um médico de confiança. “Somente o médico, com conhecimento técnico e sensibilidade para avaliar as condições individuais de cada paciente, pode determinar se aquela orientação é correta, aplicável e segura.”
O alerta dos especialistas é que informações amplas e genéricas demais — mesmo não sendo falsas — acabam induzindo o público a conclusões equivocadas¹. Para enfrentar esse cenário, Kaňková explica que o estudo propõe três frentes principais, todas baseadas em evidências levantadas com os próprios criadores de conteúdo entrevistados¹.
A primeira é ensinar o público a avaliar informações. Isso significa ir além de campanhas genéricas contra “fake news” e investir em educação prática — por exemplo, mostrar como checar a data de um estudo, identificar se a fonte tem credibilidade científica e entender que uma experiência individual não equivale a uma prova clínica.
Nesse ponto, Fernandes reforça: “A recomendação que deixo para pacientes e familiares é simples: ao se deparar com uma informação digital que pareça relevante, levem-na ao médico de confiança antes de tomar qualquer decisão. O mundo digital jamais substituirá o olhar clínico, a percepção e a sensibilidade do médico.”
A segunda frente é capacitar influenciadores para se comunicarem com base científica. Segundo a pesquisadora, muitos criadores bem-intencionados acabam reproduzindo mensagens imprecisas por não compreenderem nuances de estudos ou diretrizes clínicas. O estudo sugere programas de formação rápida, parcerias com instituições de saúde e até a criação de selos de “comunicador certificado”.
Fernandes lembra que a AMB, composta por 54 sociedades de especialidades médicas e 27 federadas estaduais, tem buscado atuar nesse campo. A entidade criou uma Comissão de Saúde Digital, responsável por orientar médicos por meio de boletins, cursos e atividades em congressos. “Nosso objetivo é colaborar com a correta comunicação em saúde e também com políticas públicas, sempre enfatizando a ética e a responsabilidade no uso das redes”, explica.
A terceira é verificar as credenciais de quem fala sobre saúde nas redes. Isso envolve desde ações das próprias plataformas — como políticas para exibir de forma clara a formação do autor — até medidas regulatórias que impeçam o uso de títulos e especializações falsas. Para Fernandes, é urgente avançar nessa direção: “Hoje, os influenciadores caminham soltos, sem qualquer marco regulatório e sem responder por eventuais danos que possam causar. Precisamos discutir, com o Legislativo, o Judiciário e as próprias plataformas digitais, a criação de regras claras que tragam mais confiabilidade ao que circula no ambiente digital.”
O alcance das redes é expressivo e vai além do consumo passivo. No YouTube, 87% dos usuários assistem a vídeos sobre saúde e 84% afirmam já ter tomado decisões — como iniciar ou interromper tratamentos, mudar hábitos alimentares ou buscar consultas médicas — a partir do que viram¹.
Ao mesmo tempo, 35,6% dos usuários de redes sociais percebem que há muita desinformação circulando sobre saúde, enquanto 66,6% dizem ter dificuldade em diferenciar o que é verdadeiro do que é falso¹. Segundo Kaňková, essa dificuldade não está restrita apenas a quem tem pouco contato com temas médicos: ela se intensifica entre pessoas que possuem menos prática em buscar e avaliar informações online e que, muitas vezes, não sabem por onde começar a checagem ou quais fontes considerar confiáveis¹.
Segundo Fernandes, isso aumenta a responsabilidade do médico como fonte segura: “O paciente se vê diante de informações muitas vezes contraditórias — um influenciador aponta numa direção, outro no sentido oposto. Nesse cenário, é natural que não consiga discernir sozinho. O médico é o ponto seguro de busca dessas informações.”
No Reino Unido, um estudo publicado no BMJ Evidence-Based Medicine e liderado por Alexandra Freeman, da Universidade de Cambridge, analisou a influência das redes sociais em pacientes com câncer³. A pesquisa revelou que vídeos no YouTube e TikTok contendo informações falsas ou enganosas levaram pacientes a desistirem de tratamentos comprovadamente eficazes, com relatos preocupantes de interrupção do acompanhamento médico.
Esse tipo de impacto preocupa também a AMB. Fernandes alerta para os riscos de conteúdos aparentemente “inofensivos”: “Mesmo quando uma informação é verdadeira em termos gerais, ela pode não ser aplicável a um paciente específico. É aí que mora o perigo: transformar uma orientação coletiva em recomendação individual sem o devido julgamento clínico.”
Pesquisas recentes também apontam estratégias sutis empregadas por microinfluenciadores para espalhar desinformação: postagens repetitivas, alto apelo emocional e segmentação em grupos fechados, criando um ambiente propício para que dúvidas se enraízem, segundo estudo de Emily Vraga, da Universidade de Minnesota, publicado no Harvard Kennedy School Misinformation Review⁴.
Diante desse cenário, profissionais de saúde têm adotado respostas diretas nas mesmas plataformas. Uma estratégia cada vez mais usada é a prática conhecida como “Debunk-It-Yourself”, descrita no artigo “Debunk-It-Yourself: Health Professionals’ Strategies for Responding to Misinformation on TikTok”, de Filippo Sharevski e colaboradores (NSPW 2024, publicado em 2025)². Nessa abordagem, médicos e especialistas produzem vídeos curtos que refutam boatos com linguagem acessível e dados científicos, ampliando o alcance de informações confiáveis.
Para Fernandes, esse movimento é fundamental, mas não suficiente: “Cabe ao médico se posicionar e usar a linguagem acessível das redes para orientar corretamente. Mas, paralelamente, precisamos de regulação, ética e vigilância sobre quem produz e difunde informação em saúde.”
O avanço da saúde digital requer mais do que alerta contra fake news: exige educação para o público, certificação e ética entre influenciadores, regulação clara e valorização do médico como referência de confiança. Como reforçam Kaňková e a Associação Médica Brasileira, apenas a integração entre ciência, ética profissional e regulação pode garantir decisões de saúde seguras em meio ao turbilhão de informações digitais.
Referências
¹ Kaňková J., Binder A., Matthes J. Helpful or harmful? Navigating the impact of social media influencers’ health advice: insights from health expert content creators. BMC Public Health. 2024;24:3511. DOI: 10.1186/s12889-024-21095-3.
URL: https://bmcpublichealth.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12889-024-21095-3
² Sharevski F., Vander Loop J., Devine A., Jachim P., Das S. ‘Debunk-It-Yourself’: Health Professionals’ Strategies for Responding to Misinformation on TikTok. New Security Paradigms Workshop (NSPW) 2024 (published 2025). DOI: 10.1145/3703465.3703469.
URL: https://dl.acm.org/doi/10.1145/3703465.3703469
³ Freeman A. et al. Cancer patients’ decision-making influenced by health misinformation on social media: a content analysis of YouTube and TikTok videos. BMJ Evidence-Based Medicine. 2024. DOI: 10.1136/bmjebm-2023-112541.
URL: https://ebm.bmj.com/content/early/2024/05/20/bmjebm-2023-112541
⁴ Vraga E.K., Bode L. Correcting health misinformation in closed social media groups. Harvard Kennedy School Misinformation Review. 2020. DOI: 10.37016/mr-2020-030.
URL: https://misinforeview.hks.harvard.edu/article/correcting-health-misinformation-in-closed-social-media-groups/