Evidências científicas desmentem o mito e confirmam: heparina só tem indicação para trombose
A heparina, um medicamento anticoagulante, tem sido objeto de especulação e esperança entre gestantes por anos, com a ideia de que poderia prevenir abortos ou “melhorar” a formação da placenta. No entanto, um olhar atento sobre as evidências científicas mais recentes revela que essa crença é, um mito. “Heparina não melhora resultado obstétrico; não faz a mulher evitar abortar, não faz a placenta se formar melhor, não evita óbito fetal ou muito menos pré-eclâmpsia”, afirma a Dra. Fernanda Spadotto Baptista, médica assistente do grupo de Tromboses e Trombofilias na Gestação e de Hipertensão na Gestação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). Ela relata que essa crença muitas vezes se alimenta da ânsia por um milagre, mas alerta que, em alguns casos, a melhor conduta é não fazer nada. A especialista destaca que a indicação do fármaco é específica e não deve ser generalizada.
A hipótese de que a heparina poderia ter um efeito benéfico na gestação ganhou força a partir de achados retrospectivos do início dos anos 2000, segundo Fernanda. No entanto, quando ensaios clínicos controlados e randomizados começaram a ser realizados, a teoria perdeu sustentação. A dificuldade em conduzir esses estudos, já que muitas pacientes preferiam tomar o medicamento a participar de grupos de controle, atrasou as publicações, mas não alterou a conclusão. Um dos mais importantes é o estudo ALIFE2, um ensaio multicêntrico randomizado, coordenado pela obstetra e pesquisadora especializada em aborto de repetição, Siobhan Quenby, professora da University of Warwick, e publicado no periódico The Lancet em 2023, que demonstrou que não houve benefício no uso da heparina em mulheres com aborto recorrente e trombofilia hereditária¹. A taxa de nascidos vivos no grupo que usou o medicamento foi de 72%, contra 71% no grupo de cuidado padrão, sem diferença significativa.
Fernanda explica que a crença no uso da heparina para “melhorar a placenta” se alimenta da ansiedade de profissionais e famílias. Ela enfatiza que a melhor conduta, em muitos casos, é evitar tratamentos sem respaldo científico e focar em um acompanhamento criterioso. A heparina tem uma finalidade clara: a prevenção de tromboembolismo venoso (TEV) em gestantes com risco definido, como aquelas com histórico pessoal de coágulos ou trombofilias de alto risco. O medicamento é, portanto, uma medida de tromboprofilaxia, e não um “atalho” para garantir o sucesso da gestação³.
Corroborando as descobertas do ALIFE2, uma meta-análise de dados individuais conduzida pelo hematologista e especialista em trombose, Dr. Marc A. Rodger, professor da University of Ottawa, que agregou dados de oito ensaios e 963 gestantes, também publicada no The Lancet, não encontrou uma redução estatisticamente significativa na recorrência de problemas como pré-eclâmpsia, restrição de crescimento fetal e descolamento². O conjunto das evidências científicas afasta a hipótese de que a anticoagulação, por si só, “corrija” problemas de placentação em mulheres sem indicação trombótica.
O Que a Ciência Recomenda para a Pré-Eclâmpsia
Se a heparina não é a solução para os problemas de placentação, a ciência aponta para outras medidas eficazes, com foco específico na prevenção da pré-eclâmpsia. “Prevenção de pré-eclâmpsia se faz com aspirina e cálcio — não é com heparina”, reforça Fernanda. A estratégia farmacológica, com base populacional e início precoce, é a mais consistente.
O estudo ASPRE, liderado pelo obstetra e pesquisador em pré-eclâmpsia, Daniel L. Rolnik, da Monash University, mostrou uma redução de 62% da pré-eclâmpsia pré-termo em gestantes de alto risco que tomaram 150 mg de ácido acetilsalicílico (AAS) por noite, entre 11 e 14 semanas de gestação até a 36ª semana⁴. Essas pacientes de alto risco foram identificadas por meio de uma triagem realizada no primeiro trimestre. No Brasil, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) recomenda o uso de AAS de 100 mg por dia ou mais⁵, preferencialmente 150 mg, iniciando antes da 16ª semana em pacientes de alto risco. A especialista enfatiza que, em sua prática clínica, o AAS é iniciado idealmente antes da 10ª semana, sempre após uma avaliação individual de risco.
Além do AAS, a suplementação de cálcio também é uma medida preventiva comprovada. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda de 1,5 a 2,0 gramas por dia, em doses fracionadas, para gestantes com baixa ingestão dietética do mineral, visando reduzir o risco de distúrbios hipertensivos⁶. No Brasil, essa recomendação foi reforçada pelo Ministério da Saúde, que passou a oferecer cálcio de forma universal na Atenção Primária, uma medida alinhada ao perfil alimentar do país e às evidências internacionais⁷. A recomendação é particularmente relevante no Brasil, onde a ingestão de cálcio é, em geral, baixa na população.
Para gestantes e profissionais de saúde, a lição central é clara: a conduta baseada em evidências é o caminho mais seguro. A ciência oferece respostas e alternativas eficazes que, quando aplicadas no momento e na forma corretos, garantem o bem-estar da mãe e do bebê, sem a necessidade de buscar soluções milagrosas.