Emagrecedores: o que a ciência aprova x o que se prescreve

Popularização dos emagrecedores injetáveis expõe pacientes a riscos fora da indicação médica

Popularização dos emagrecedores injetáveis expõe pacientes a riscos fora da indicação médica

Nos últimos anos, o Brasil viveu uma explosão na procura por emagrecedores injetáveis como o Ozempic e o Wegovy, ambos à base de semaglutida, substância usada no tratamento do diabetes tipo 2 e da obesidade. O fenômeno se espalhou das redes sociais para as farmácias, sustentado pela promessa de perda de peso rápida e visível. Mas, com a popularização, vieram práticas arriscadas e fora da medicina baseada em evidências — isto é, a que segue estudos científicos de qualidade. Uma das que mais chamam atenção é o fracionamento do Ozempic em “cliques diários”, adaptação sem respaldo científico e formalmente contraindicada pelo fabricante¹.

Essa prática contraria o funcionamento previsto pelo próprio medicamento. A caneta de Ozempic foi desenvolvida para liberar doses semanais fixas, após pesquisas que mostraram que a substância permanece ativa no organismo por vários dias. Qualquer tentativa de adaptar esse esquema — como dividir em aplicações diárias — foge do que foi estudado e aprovado, preocupando especialistas.

Ozempic x Wegovy: diferenças e indicações

O Ozempic foi o primeiro a chegar ao mercado, em 2017, indicado para tratar diabetes tipo 2. Na época, médicos perceberam que, além de controlar a glicose, muitos pacientes também perdiam peso de forma consistente². Essa observação abriu caminho para a criação de um novo produto, o Wegovy, lançado em 2021 em doses mais altas e já com indicação específica para o tratamento da obesidade³. Dois anos depois, novas pesquisas mostraram que ele também ajudava a reduzir o risco de infarto e derrame em pessoas com obesidade, mesmo naquelas que não tinham diabetes⁴.

Na prática clínica, isso significa que Ozempic e Wegovy não são a mesma coisa em termos de indicação. Embora tenham a mesma molécula, cada um foi estudado, testado e aprovado para um fim diferente. O primeiro segue autorizado apenas para diabetes tipo 2, enquanto o segundo é voltado ao tratamento da obesidade. Misturar as indicações, usar um no lugar do outro ou adaptar a forma de aplicação não tem respaldo científico e pode trazer riscos.

O endocrinologista Marcio Mancini, diretor do Departamento de Tratamento Farmacológico da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), chama atenção para outras práticas que comprometem a segurança do paciente. “Preocupa muito o uso de medicações manipuladas ou versões alternativas sem origem comprovada. Não há controle de qualidade pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e é temerário que as pessoas utilizem esse tipo de produto, algumas vezes aplicado de forma completamente antiética”, afirma.

Quem realmente deve usar emagrecedores injetáveis

Segundo Mancini, os critérios de prescrição desses medicamentos seguem o que foi demonstrado nas pesquisas que embasaram sua aprovação. Nessas situações, os pacientes incluídos tinham sobrepeso — índice de massa corporal (IMC, cálculo do peso dividido pela altura ao quadrado) de 27 ou mais — associado a doenças relacionadas ao excesso de peso, como hipertensão ou colesterol alto, ou obesidade com IMC acima de 30. Esses são os casos nos quais o remédio deve ser indicado. Não há evidências em pessoas com IMC abaixo de 27, e o uso nessa faixa é considerado fora das indicações aprovadas (off-label).

Em situações limítrofes (IMC 25 ou 26, com excesso de gordura abdominal, por exemplo), pode haver benefício, mas são exceções. Mancini ressalta que não se trata de medicamentos para quem deseja perder apenas dois ou três quilos por estética, pois não existem dados de segurança que sustentem esse uso. Pelo contrário, as pesquisas mostraram que os efeitos colaterais — especialmente náusea, vômito e alterações gastrointestinais — foram mais frequentes em mulheres com menor peso. Como a dosagem não é ajustada ao peso corporal, essas pacientes ficam mais expostas a reações adversas. Além disso, observou-se maior perda de massa magra proporcional, o que aumenta o risco de fragilidade e sarcopenia — que é a redução de músculos e força. Já em homens com peso mais elevado, os medicamentos tendem a ser melhor tolerados²³.

A endocrinologista Flávia Coimbra, diretora da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), reforça que o uso fora das indicações pode comprometer a segurança e a eficácia, além de alimentar problemas como distúrbios de imagem corporal. “São  medicamentos excelentes quando usado corretamente, mas sempre em condições seguras, com orientação médica e farmácia de confiança”, orienta.

Riscos e efeitos colaterais

Mesmo quando usados corretamente, esses medicamentos exigem cautela. Em 2022, uma análise científica constatou maior risco de problemas na vesícula biliar⁵. Em 2023, outro levantamento avaliou registros de saúde de milhares de pessoas e encontrou casos de pancreatite e de gastroparesia — dificuldade de esvaziar o estômago — entre usuários desses medicamentos para emagrecimento⁶.

Segundo Glaucia Carneiro, professora adjunta da Disciplina de Endocrinologia da UNIFESP, os riscos são ainda mais sérios quando o paciente não tem indicação formal. “Qualquer efeito colateral nesse contexto já é inaceitável, porque não há ganho clínico. Além disso, essas pessoas acabam perdendo peso de forma não saudável, com maior perda de massa magra, risco de sarcopenia e deficiências nutricionais. Essa perda de massa magra pode acontecer precocemente, sobretudo em mulheres e idosos, aumentando o risco de fragilidade e queda. Não é só o peso na balança que importa, mas o que está sendo perdido”, ressalta.

Outro tema que ganhou destaque nas redes sociais foi o apelidado “Ozempic face” e até mesmo “cabeça de Ozempic”, expressões usadas para descrever a aparência abatida de quem perde peso rápido com o uso desses medicamentos. O termo passou a ser discutido em consultórios de dermatologia e cirurgia plástica, e já aparece em publicações médicas⁷. Em 2025, uma revisão sistemática europeia reforçou a preocupação, descrevendo alterações semelhantes ao envelhecimento precoce em pacientes que usaram essa classe de medicamentos para emagrecer⁸. O mecanismo é conhecido: ao emagrecer depressa, o corpo perde gordura subcutânea que dá sustentação à pele, gerando flacidez, rugas mais profundas e aparência cansada. Esse efeito não acontece em todo mundo, mas tende a surgir em quem perde peso muito rápido, especialmente sem indicação médica e sem acompanhamento adequado.

Escassez, mercado paralelo e diretrizes

O uso indiscriminado ainda gera outro problema: a escassez. Em 2024, a Organização Mundial da Saúde emitiu um alerta global sobre falsificações de Ozempic em circulação, inclusive no Brasil⁹. Este ano, a Anvisa determinou que a venda só poderia ocorrer com receita retida e farmácias credenciadas¹⁰. “São medicamentos excelentes para quem realmente precisa”, afirma Glaucia Carneiro. “Mas muitos pacientes ficam sem porque os estoques esgotam com a corrida estética. Além disso, surgem falsificações, práticas inadequadas que precisam ser denunciadas.”

A endocrinologista também observa que muitos pacientes que buscam os remédios por estética desenvolvem distorções de imagem corporal sem perceber. “Alguns chegam ao consultório querendo perder dois ou três quilos, mas na verdade já estão colocando em risco massa magra e até saúde óssea. É preciso cuidado para não transformar a busca por estética em um problema clínico sério.”

Glaucia acrescenta ainda que enfrentar o mau uso também exige acolher quem procura os medicamentos por motivos estéticos. “Muitas vezes, esses pacientes não percebem que estão desenvolvendo distúrbios de imagem corporal. Precisamos orientar, mostrar alternativas seguras e saudáveis, e não julgar.”

A obesidade é uma doença crônica, e tratá-la com base científica é essencial. A chegada da semaglutida marcou um avanço inédito no manejo da doença, mas improvisos como o fracionamento em cliques ou o uso sem indicação médica transformam uma conquista em risco.

Referências

  1. Novo Nordisk. Ozempic® (semaglutida) – bula profissional. Disponível em:
    https://www.novonordisk.com.br/content/dam/nncorp/br/pt/pdfs/Ozempic-Bula-Profissional.pdf
  2. Marso SP, et al. Semaglutide and Cardiovascular Outcomes in Patients with Type 2 Diabetes. N Engl J Med. 2016;375(19):1834–1844. DOI: 10.1056/NEJMoa1607141. Disponível em:
    https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa1607141
  3. Wilding JPH, Batterham RL, Calanna S, et al. Once-Weekly Semaglutide in Adults with Overweight or Obesity. N Engl J Med. 2021;384:989–1002. DOI: 10.1056/NEJMoa2032183. Disponível em:
    https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2032183
  4. Lincoff AM, et al. Semaglutide and Cardiovascular Outcomes in Obesity without Diabetes. N Engl J Med. 2023;389(24):2221–2232. DOI: 10.1056/NEJMoa2307563. Disponível em:
    https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2307563
  5. He L, Wang J, Ping F, et al. Association of GLP-1 RA Use With Risk of Gallbladder and Biliary Diseases. JAMA Intern Med. 2022;182(5):513–519. DOI: 10.1001/jamainternmed.2022.0338. Disponível em:
    https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/35344001/
  6. Sodhi M, et al. Risk of Gastrointestinal Adverse Events Associated With GLP-1 Agonists Used for Weight Loss. JAMA. 2023. DOI: 10.1001/jama.2023.19574. Disponível em:
    https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37796527/
  7. Tay JQ. Ozempic face: A new challenge for facial plastic surgeons. J Plast Reconstr Aesthet Surg. 2023;81:97–98. DOI: 10.1016/j.bjps.2023.04.057. Disponível em:
    https://www.jprasurg.com/article/S1748-6815(23)00214-0/abstract
  8. Daneshgaran G, Hsiao YC, Matros E. “Ozempic Face”: A Systematic Review of Facial Changes Associated With Semaglutide Use. Aesthetic Surgery Journal Open Forum. 2025;7(6). DOI: 10.1093/asjof/ojaf003. Disponível em:
    https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/40626110/
    e também em:
    https://academic.oup.com/asjopenforum/article/7/6/ojaf003/8160112
  9. World Health Organization. Medical Product Alert N°2/2024: Falsified OZEMPIC (semaglutide). 19 Jun 2024. Disponível em:
    https://www.who.int/news/item/19-06-2024-medical-product-alert-n-2-2024–falsified-ozempic-(semaglutide)
  10. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Resolução RDC nº 855, de 15 de janeiro de 2025. Disponível em:
    https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-rdc-n-855-de-15-de-janeiro-de-2025-537528901
  11. ABESO/SBEM. Diretrizes brasileiras de obesidade 2024. Disponível em:
    https://abeso.org.br/diretrizes

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Deborah Lima

Jornalista do Saúde a Sério

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