
A vitamina D virou febre. Farmácias vendem aos montes, influenciadores indicam para quase tudo e muitos médicos prescrevem quase automaticamente. A promessa parece irresistível: fortalecer a imunidade, melhorar o humor, prevenir doenças. Mas, um consenso científico publicado em 2024 pela Endocrine Reviews, principal revista de endocrinologia dos Estados Unidos, faz um alerta importante.
Cerca de 1 bilhão de pessoas no mundo têm deficiência de vitamina D, e quase metade da população global apresenta níveis abaixo do ideal¹. No Brasil, um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostrou que cerca de 66% da população tem deficiência (15,3%) ou insuficiência (50,9%) do nutriente, mesmo durante o verão². Apesar da prevalência elevada, cresce o número de pessoas que tomam suplementos sem necessidade real — o que pode causar excesso e riscos desnecessários. Pesquisas mostram que a vitamina D atua no corpo como um hormônio, regulando centenas de processos³. Por isso, suplementar sem orientação ou exame prévio pode trazer mais riscos do que benefícios.
A vitamina D funciona como um maestro que coordena uma complexa orquestra de funções corporais. Depois que você toma sol ou consome alimentos ricos no nutriente, o corpo o transforma primeiro no fígado e depois nos rins, criando uma forma ativa que circula pelo sangue e entra nas células. Lá dentro, essa molécula liga “interruptores” que ativam ou desativam mais de 250 processos diferentes⁴. Por isso, influencia ossos, músculos, e até mesmo o sistema imunológico⁵. Quando os níveis estão baixos, não é apenas falta de nutriente: trata-se de uma disfunção que pode comprometer desde a absorção de cálcio até a regulação da imunidade. Entre os sintomas mais comuns da deficiência de vitamina D estão cansaço, fraqueza muscular, dores ósseas difusas, queda de cabelo e infecções respiratórias mais frequentes, segundo diretrizes da Endocrine Society⁶.
Por que tanta gente tem deficiência de vitamina D, mesmo em países ensolarados
A vida moderna joga contra a produção natural de vitamina D. Estudos indicam que pessoas em países desenvolvidos passam cerca de 87% do tempo em ambientes fechados e 6% em veículos⁷, com exposição solar mínima. A rotina urbana, o trabalho remoto e o uso constante de protetor solar reforçam essa tendência.
Nossos avós viviam mais ao ar livre. Hoje, a maior parte do dia acontece sob um teto — o que reduz drasticamente sua síntese natural pela pele D. A geografia também interfere. Em regiões mais ao sul do Brasil, como Curitiba ou Porto Alegre, a inclinação dos raios solares durante boa parte do ano não favorece a produção adequada do nutriente, mesmo com exposição prolongada². Quanto mais distante da linha do Equador, menor é a intensidade da radiação ultravioleta tipo B (UVB) — responsável por estimular a síntese da vitamina na pele.
A melanina também tem papel importante. Ela funciona como um protetor natural contra a radiação ultravioleta — o que ajuda a prevenir o câncer de pele, mas reduz a produção da vitamina. Por isso pessoas negras precisam de três a seis vezes mais exposição solar do que pessoas de pele clara para atingir a mesma produção⁸.
O envelhecimento também pesa. Aos 70 anos, uma pessoa produz aproximadamente metade da vitamina D que produzia aos 20 — uma queda de cerca de 10% por década⁹, assim como o peso corporal: como a vitamina D é solúvel em gordura, ela tende a se acumular no tecido adiposo, circulando menos no sangue. Pessoas com obesidade, portanto, costumam precisar de doses mais altas para atingir os mesmos níveis sanguíneos.
Exposição solar: quanto tempo é o ideal para produzir vitamina D
Pesquisas sugerem que de 5 a 30 minutos de exposição solar breve e controlada, de duas a três vezes por semana, em braços e pernas, entre 10h e 15h, costumam ser suficientes para pessoas de pele clara¹⁰ produzirem níveis suficientes de Vitamina D. Já as de pele escura podem precisar de 15 a 45 minutos para o mesmo efeito. A regra é simples: tempo o bastante para estimular a produção, sem queimar a pele.
Vale ressaltar: Os horários tradicionalmente considerados “seguros” para tomar sol (antes das 10h e após 16h) têm radiação UVB mais fraca — o que reduz o risco de queimaduras, mas também limita a síntese da vitamina.
Uma dúvida comum é sobre o protetor solar. Ele impede mesmo a produção de vitamina D? Em teoria, um fator 30 bloqueia cerca de 97% dos raios UVB. Na prática, porém, o uso real não costuma causar deficiência¹¹, já que raramente o produto é aplicado de forma uniforme e há intervalos de exposição antes da reaplicação. A recomendação é clara: faça uma exposição breve sem protetor nos primeiros minutos e, depois, aplique o filtro solar.
Quem tem histórico de câncer de pele, lesões pré-malignas ou outros fatores de risco deve evitar o sol direto e optar pela suplementação oral, sempre com acompanhamento médico.
Vitamina D nos alimentos e quando suplementar
É praticamente impossível obter toda a vitamina D apenas pela dieta. Os alimentos mais ricos são os peixes gordos de águas frias. Cem gramas de salmão selvagem fornecem cerca de 988 UI de vitamina D — quase o suficiente para o dia¹². Já o salmão de cativeiro, mais comum no mercado, tem apenas 240 UI, um quarto do valor, por conta das diferenças na dieta e na exposição solar dos peixes¹².
Outros peixes também ajudam, mas em quantidades menores: sardinha enlatada, atum e ovos contêm teores mais modestos¹³. Para atingir a dose diária só com ovos, seria preciso comer cerca de 15 por dia — algo inviável do ponto de vista nutricional e cardiovascular. Leite fortificado tem, em média, 100 UI por copo. Cogumelos expostos ao sol podem contribuir, mas a maioria dos cultivados comercialmente tem níveis muito baixos.
Na prática, seria preciso comer salmão selvagem em duas refeições diárias para atingir a recomendação — o que é inviável para a maioria das pessoas.
Então, quando a exposição solar e a alimentação não bastam, a suplementação pode ser necessária — mas deve ser prescrita pelo médico. As doses variam conforme a gravidade da deficiência e as características individuais⁶. Para manutenção preventiva em quem tem níveis normais, mas risco aumentado, recomenda-se entre 800 e 2000 UI por dia. Casos leves (12 a 20 ng/mL) pedem de 800 a 1000 UI diárias, com nova avaliação após três meses. Deficiências severas, abaixo de 12 ng/mL, podem exigir 6000 UI diárias ou doses semanais de 50 mil UI por seis a oito semanas, seguidas de manutenção. Pessoas com obesidade ou má absorção intestinal podem precisar de doses até três vezes maiores.
O excesso de vitamina D não é eliminado facilmente. Por ser solúvel em gordura, acumula-se no tecido adiposo e pode causar problemas sérios. O aumento excessivo de vitamina D eleva o cálcio no sangue, provocando náuseas, vômitos, fraqueza muscular e confusão mental. Com o tempo, pode levar à formação de cálculos renais e calcificação de artérias e rins, elevando o risco cardiovascular.
Doses altas sem acompanhamento médico representam risco real. Não é porque é vitamina que é inofensiva.
O principal recado é claro: não se deve suplementar “por precaução” ou porque “todo mundo está tomando”. A lógica do “se faz bem pra uns, serve pra mim” não se aplica a substâncias que agem como hormônios. Tratar deficiência comprovada faz diferença clínica — especialmente para a saúde óssea, a força muscular e, possivelmente, a imunidade. O erro está em tomar sem saber se há necessidade real.
A ciência é categórica: faça o exame de vitamina D, trate se houver indicação e evite modismos. Quando o assunto é algo que atua como hormônio no corpo, menos pode ser mais.
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