Alerta na China e a vacina que muda todo ano: entenda as mutações da gripe

Pesquisa identifica sinais de adaptação do influenza D a humanos, mas sem transmissão sustentada. Entenda as mutações do vírus

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Uma notícia recente da China voltou a acender o sinal de alerta sobre vírus respiratórios. Pesquisadores identificaram que um tipo de influenza até então restrito a animais pode ter começado a infectar pessoas. Calma: não é motivo para pânico. Mas serve como lembrete de algo que acontece silenciosamente todos os anos. O vírus da gripe muda constantemente para escapar das nossas defesas. Por isso aquela pergunta que muita gente faz ao tomar a vacina — “mas eu não tomei ano passado?” — tem uma resposta bem científica: as mutações constantes do vírus influenza obrigam os cientistas a reformular a imunização todo ano.

Pesquisadores do Instituto de Pesquisa Veterinária de Changchun publicaram neste mês um estudo na revista Emerging Microbes & Infections¹. O trabalho mostra que o vírus influenza D — até agora considerado restrito a animais como gado — pode estar desenvolvendo a capacidade de se transmitir entre humanos. A equipe analisou uma cepa que vem sendo monitorada desde 2023. Os números chamam atenção: 74% das pessoas testadas no nordeste da China apresentaram sinais de contato com o vírus. Entre aquelas com sintomas respiratórios, a taxa sobe para **97%**¹.

O influenza D foi identificado pela primeira vez em 2011, nos Estados Unidos². Desde então, circulou apenas entre animais. O novo estudo mostrou que a cepa consegue se espalhar pelo ar entre animais e se replicar em células respiratórias humanas¹. Mas existe um detalhe importante que muda completamente o cenário: ainda não há evidência de transmissão sustentada entre humanos. Ou seja, de pessoa para pessoa de forma contínua¹. O vírus não mostrou, até agora, capacidade de se espalhar em comunidades. Então, por enquanto, não há motivo para alarme.

Por que a descoberta importa

A história já ensinou algumas lições amargas. As piores pandemias respiratórias começaram justamente assim: com vírus que circulavam em animais e desenvolveram a capacidade de infectar humanos³. Foi o caso da gripe espanhola de 1918, da gripe suína de 2009 e, embora causada por um coronavírus e não pelo influenza, da COVID-19 em 2020. Sempre que os cientistas identificam sinais de que um vírus animal pode estar se adaptando para infectar pessoas, acionam protocolos de monitoramento intensivo. Não é paranoia — é precaução baseada no que já aconteceu antes.

Aqui no Brasil, o Ministério da Saúde não monitora especificamente o influenza D. Ele continua restrito a animais e não há registro de circulação no país. Nossa rede de vigilância epidemiológica acompanha apenas os tipos A e B, que são os responsáveis pelas epidemias sazonais em humanos. A descoberta chinesa não muda as recomendações de saúde pública por aqui.

Por que a China é foco de atenção

As grandes epidemias de gripe costumam começar no hemisfério norte. Entre outubro e março, com a chegada do inverno nessas regiões, os vírus influenza circulam com mais força.

A Ásia, principalmente a China, tem um papel especial nessa história. Regiões muito povoadas do sul da China funcionam como verdadeiros caldeirões evolutivos para o vírus⁴. Lá, humanos, porcos e aves vivem bem próximos. Quando um porco é infectado ao mesmo tempo por um vírus de ave e outro de humano, os dois podem trocar segmentos de material genético. Esse processo, chamado de recombinação genética, cria versões totalmente novas do vírus — contra as quais ninguém tem defesas. É nesse cenário que surgem novos subtipos com potencial pandêmico.

Com os voos internacionais, uma cepa que aparece em Pequim em novembro pode estar em São Paulo já em fevereiro. Não por acaso, as grandes pandemias de gripe do século passado foram detectadas primeiro no hemisfério norte antes de se espalharem pelo mundo³.

Os tipos de vírus da gripe

A gripe não vem de um único vírus. Os influenza se dividem em tipos A, B e D. O tipo A é o mais perigoso: infecta várias espécies animais e muda com facilidade impressionante. O tipo B circula só entre humanos e geralmente causa quadros mais leves⁵. Já o influenza D, que virou notícia agora, sempre foi considerado exclusivo de animais — até surgirem os primeiros sinais de que pode estar se adaptando a humanos.

As vacinas atuais contra gripe contêm apenas os tipos A e B. Se o influenza D passar realmente a se transmitir de forma sustentada entre pessoas, aí sim ele entraria em futuras versões da vacina. Mas isso levaria anos de pesquisa e testes clínicos.

Como o vírus muda: duas formas de mutação

O vírus da gripe tem proteínas na superfície que são os alvos do nosso sistema imunológico e da vacina. Quando tomamos a vacina ou pegamos gripe, o corpo aprende a reconhecer essas estruturas e produz anticorpos contra elas. O problema é que o vírus influenza muda de duas maneiras diferentes, e essas mudanças o tornam quase irreconhecível com o tempo.

A primeira forma se chama deriva antigênica. São pequenas mutações que acontecem o tempo todo. O vírus vai trocando pequenas partes de sua estrutura aos poucos. Essas alterações se acumulam e mudam gradualmente a forma das proteínas⁶. Com o passar do tempo, nossos anticorpos começam a ter dificuldade para reconhecer o vírus, mesmo que ainda consigam combatê-lo parcialmente. Essa mudança acontece todo ano e é por isso que a vacina precisa ser atualizada anualmente.

A segunda forma é bem mais dramática. Chama-se rearranjo antigênico e acontece quando o vírus troca completamente sua estrutura⁷. Isso ocorre quando dois subtipos diferentes de influenza A infectam a mesma célula — geralmente em animais como porcos. Os dois vírus trocam segmentos inteiros de material genético e criam um subtipo completamente novo. Quando isso acontece, toda a população fica vulnerável, porque ninguém tem imunidade prévia. Esse fenômeno deu origem às grandes pandemias de gripe do século passado⁸.

Como a OMS escolhe as cepas da vacina

Diante de tanta instabilidade genética, os cientistas precisam monitorar o tempo todo quais formas do influenza estão circulando. A Organização Mundial da Saúde mantém uma rede global com mais de 140 centros em 110 países⁹. Esses laboratórios fazem o sequenciamento genético dos vírus, mapeiam as mutações e identificam quais cepas estão se espalhando mais.

Duas vezes por ano — em fevereiro e setembro — comitês de especialistas se reúnem para decidir quais cepas vão entrar na vacina da próxima temporada¹⁰. A reunião de setembro define a composição para o hemisfério sul, baseada nas variantes que circularam no inverno do hemisfério norte. Já a reunião de fevereiro determina a formulação para o hemisfério norte, analisando os padrões do hemisfério sul¹¹.

Os especialistas precisam prever quais variantes vão estar circulando dali a seis ou oito meses — que é o tempo necessário para produzir milhões de doses. Às vezes a previsão acerta. Outras vezes o vírus surpreende com mutações inesperadas, e a efetividade da vacina cai¹².

Vacinas disponíveis no Brasil

Aqui no Brasil, existem dois tipos de vacina contra gripe. A vacina trivalente, oferecida de graça pelo SUS, protege contra três cepas: dois subtipos de influenza A (geralmente H1N1 e H3N2) e uma linhagem de influenza B chamada Victoria¹³. Já a vacina quadrivalente, disponível na rede privada, adiciona uma segunda linhagem B, a Yamagata¹⁴.

Como a linhagem Yamagata não é mais detectada desde março de 2020, a OMS recomendou que o mundo todo passe a usar vacinas trivalentes¹⁵. Na prática, em 2025, as duas vacinas oferecem proteção equivalente contra os vírus que estão circulando no Brasil.

A efetividade da vacina

A efetividade da vacina varia de ano para ano. Quando há um bom encaixe entre as cepas da vacina e os vírus que estão circulando, a proteção é maior. Mas mesmo quando a vacina não consegue impedir completamente a infecção, ela ainda oferece proteção forte contra os desfechos mais graves da doença.

Os dados do CDC americano mostram que a vacinação reduz o risco de internação por gripe em cerca de 40% a 50% nos adultos e até 74% nas crianças¹⁶. Entre os pacientes que acabam hospitalizados, aqueles que foram vacinados têm 37% menos chance de ir para a UTI e 65% menos risco de precisar de ventilação mecânica¹⁷. Para pessoas com 65 anos ou mais, a vacinação reduz o risco de morte por gripe entre **48% e 68%**¹⁸.

A imunização contra influenza gera uma resposta do sistema imunológico que, mesmo não bloqueando totalmente o vírus quando ele sofreu mutações, ainda consegue combatê-lo. Para grupos de risco — idosos, crianças pequenas, gestantes e pessoas com doenças crônicas — essa proteção pode fazer toda a diferença entre um resfriado forte e uma internação na UTI¹⁹.

O cenário no Brasil

A gripe mata entre 290 mil e 650 mil pessoas por ano no mundo, segundo a OMS. A maioria são idosos e pessoas com problemas de saúde que deixam o sistema imunológico mais frágil²⁰. Aqui no Brasil, a vacinação anual faz parte do calendário nacional de imunizações desde 1999²¹. A campanha de 2025 distribuiu 35 milhões de doses da vacina trivalente pelo país inteiro, priorizando os grupos de maior risco.

Voltando à notícia sobre o influenza D na China: ela merece atenção científica, sim, mas não deve causar alarme na população. O vírus ainda não mostrou capacidade de se espalhar de pessoa para pessoa de forma sustentada. Para quem mora no Brasil, nada muda. O influenza D não circula por aqui e não há recomendação de precauções adicionais. A orientação continua a mesma de sempre: manter a vacinação anual em dia contra os tipos A e B.

O que essa descoberta realmente ensina é algo que já sabemos há décadas: o vírus da gripe está sempre mudando, e nossa melhor defesa é a combinação entre vigilância científica rigorosa e imunização anual. Cada dose funciona como uma atualização das nossas defesas, um treino contra as versões mais recentes de um adversário que não para nunca.

Para Levar a Sério

  • Pesquisadores identificaram sinais de que o vírus influenza D (restrito a animais) pode estar se adaptando a humanos
  • 74% das pessoas testadas no nordeste da China mostraram sinais de contato com o vírus
  • Ainda não há transmissão sustentada entre humanos — ou seja, não se espalha de pessoa para pessoa
  • Não há motivo para alarme nem mudanças nas recomendações de saúde pública
  • O vírus da gripe sofre mutações constantes que o tornam irreconhecível para nosso sistema imunológico
  • Existem dois tipos de mudanças: deriva antigênica (pequenas mutações graduais) e rearranjo antigênico (mudanças bruscas e completas)
  • A OMS monitora o vírus globalmente e se reúne duas vezes por ano para definir quais cepas entram na vacina
  • Mesmo quando não impede totalmente a infecção, a vacina protege contra casos graves
  • Reduz em 40% a 50% o risco de internação em adultos e até 74% em crianças
  • Entre hospitalizados, vacinados têm 37% menos chance de ir para UTI e 65% menos risco de precisar ventilação mecânica
  • Em idosos, reduz o risco de morte entre 48% e 68%

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Equipe Saúde a Sério

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