Por que uma doença erradicada no Brasil preocupa em 2025?

Cobertura vacinal abaixo de 95% no Brasil e casos de pólio em outros países acendem alerta para risco de reintrodução da doença

Tempo de Leitura: 7 minutos

O Brasil não registra casos autóctones de poliomielite (pólio) desde 1989 — há mais de três décadas. Em 1994, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) concedeu ao país o certificado internacional de eliminação da doença, confirmando que o vírus selvagem havia sido erradicado das Américas.¹² A conquista foi fruto de campanhas massivas de imunização, de um sistema público estruturado e do engajamento de milhões de famílias brasileiras.

Nos últimos anos, porém, essa proteção vem perdendo força. A cobertura vacinal contra a poliomielite, que já foi exemplo mundial, caiu de forma constante. Em 2023, apenas 86,5% das crianças receberam a vacina inativada contra a pólio — bem abaixo dos 95% recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS).³ Em alguns estados, a meta não é alcançada desde 2017.⁴

O risco de o poliovírus voltar a circular voltou a preocupar as autoridades sanitárias. O vírus não reapareceu no país, mas o enfraquecimento da proteção coletiva cria brechas que podem permitir sua reintrodução. Como lembram os especialistas, um único caso importado é suficiente para deflagrar um surto em locais onde a vacinação caiu demais.

Como o vírus da poliomielite se espalha e ataca o corpo

A poliomielite é causada por um vírus altamente contagioso, capaz de invadir o sistema nervoso e provocar paralisia em poucas horas.⁵ A transmissão ocorre principalmente pela via fecal-oral — por contato com fezes contaminadas ou gotículas respiratórias. O poliovírus se multiplica no intestino e pode ser eliminado nas fezes por semanas, espalhando-se mesmo entre pessoas sem sintomas.⁶

Cerca de 70% dos infectados não apresentam sinais da doença.⁷ Outros têm apenas sintomas leves, como febre e dor de cabeça, facilmente confundidos com uma virose comum. Isso explica por que o vírus pode circular silenciosamente em uma comunidade. Em menos de 1% dos casos, porém, ele atinge a medula espinhal e causa paralisia flácida aguda — uma fraqueza súbita e permanente, geralmente nas pernas. Entre os pacientes com paralisia, de 5% a 10% morrem quando os músculos respiratórios são afetados.⁵

Mesmo quem se recupera pode enfrentar complicações anos depois. A chamada síndrome pós-pólio provoca nova fraqueza e fadiga nos mesmos músculos atingidos pela infecção inicial. Estudos indicam que entre 25% e 40% dos sobreviventes desenvolvem o quadro de 15 a 40 anos após a doença.⁷

A história da erradicação da pólio no Brasil

Antes da vacinação em massa nas décadas de 1960 e 1970, a pólio provocava milhares de casos de paralisia infantil todos os anos. A criação do personagem Zé Gotinha, em 1986, ajudou a popularizar a imunização e transformou o Brasil em referência mundial. O reconhecimento oficial da OPAS, em 1994, coroou esse esforço coletivo.

Mas conquistas em saúde pública exigem vigilância permanente. Desde 2016, as coberturas vacinais contra a pólio caem ano após ano.⁸ A pandemia de COVID-19 agravou a situação, e a recuperação ainda é lenta. Em 2024, o número de municípios que atingiram a meta de 95% aumentou 93% em relação a 2022, mas ainda corresponde a apenas metade do país.⁹

A meta de 95% não é simbólica: ela representa o ponto mínimo para garantir imunidade coletiva, quando a maioria vacinada impede a transmissão do vírus. Quando esse patamar é rompido, surgem bolsões de vulnerabilidade — regiões onde o poliovírus pode voltar a circular.

O cenário global: pólio ainda ameaça outros países

Enquanto o Brasil comemora 35 anos sem casos, a poliomielite ainda é considerada uma ameaça global. A Organização Mundial da Saúde mantém o alerta de emergência de saúde pública de interesse internacional.¹⁰ Até julho de 2024, apenas 12 casos de poliovírus selvagem tipo 1 foram registrados no mundo — cinco no Afeganistão e sete no Paquistão, os dois únicos países onde a doença continua endêmica.³

Paralelamente, existe outro desafio: entre janeiro de 2023 e junho de 2024, foram notificados 74 surtos de poliovírus circulante derivado da vacina em 39 países, com 672 casos de paralisia.¹¹

Em julho de 2022, os Estados Unidos confirmaram o primeiro caso de poliomielite em quase uma década: um jovem adulto não vacinado, em Nova York, contraiu a forma derivada da vacina tipo 2. A análise de águas residuais revelou a presença do agente em seis condados, mostrando que havia transmissão comunitária silenciosa.¹²

Esses episódios deixam claro que, enquanto existir uma única criança infectada em qualquer parte do planeta, todas as outras permanecem em risco. O vírus pode cruzar fronteiras com um viajante assintomático e se espalhar em locais com baixa imunização. Quando a paralisia aparece, já é tarde demais.

O Brasil também realiza vigilância ambiental em parceria com organismos internacionais, analisando amostras de esgoto em busca de traços do poliovírus. Essa medida ajuda a detectar precocemente qualquer reintrodução do agente no território nacional, antes mesmo do aparecimento de casos clínicos.

Como funciona o esquema de vacinação contra a pólio

A vacina contra poliomielite passou por mudanças importantes nos últimos anos. Em novembro de 2024, o Brasil substituiu oficialmente a vacina oral (VOP), conhecida como “gotinha”, pela vacina inativada poliomielite (VIP), aplicada por injeção.¹ A mudança segue recomendação da OMS e elimina o risco — ainda que mínimo — de mutação do vírus presente na versão oral.

Na rede pública de saúde, o esquema atual prevê três doses da VIP aos 2, 4 e 6 meses de idade, seguidas de um reforço aos 15 meses.¹³ Todas as doses são obrigatórias para garantir proteção completa. A vacina é aplicada por via intramuscular e oferece mais de 95% de eficácia contra os três tipos de poliovírus.⁵

Na rede privada, segundo o calendário 2025/2026 da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), o esquema é o mesmo: três doses iniciais aos 2, 4 e 6 meses, com reforços aos 15 meses e entre 4 e 6 anos de idade.¹³ A diferença está na possibilidade de usar vacinas combinadas que protegem contra várias doenças ao mesmo tempo, reduzindo o número de picadas na criança. A mais comum é a vacina hexavalente, que inclui proteção contra poliomielite, difteria, tétano, coqueluche, Haemophilus influenzae tipo b e hepatite B em uma única aplicação.

Para crianças e adolescentes não vacinados ou com esquema incompleto, a recomendação é completar as doses o quanto antes, independentemente da idade.¹³ Adultos que nunca foram vacinados ou que vivem em situações especiais de risco — como profissionais de saúde que lidam com o poliovírus ou viajantes para países onde a doença ainda circula — também podem receber a imunização sob orientação médica.

A vacina é segura, bem tolerada e raramente causa efeitos colaterais além de leve desconforto no local da aplicação. Por ser feita com vírus inativado, não há risco de causar a doença. A proteção conferida dura por toda a vida quando o esquema completo é seguido corretamente.

Por que a cobertura vacinal está caindo no Brasil

A queda na vacinação tem várias causas. Uma delas é a falsa sensação de segurança: como a pólio desapareceu do cotidiano, muitos pais nunca viram suas consequências. Soma-se a isso a desinformação nas redes sociais, que espalha boatos e teorias falsas sobre os imunizantes. Segundo a Fiocruz (Boletim de Monitoramento da Desinformação em Saúde, 2024), conteúdos antivacina têm impacto direto na hesitação vacinal, sobretudo entre famílias jovens.¹⁴

As diferenças regionais também pesam. Norte e Nordeste seguem com índices abaixo da meta, agravados por barreiras de acesso, horários restritos e falta de profissionais. A pandemia interrompeu parte das campanhas de rotina entre 2020 e 2022, e a retomada ainda não foi total.

Novas estratégias para recuperar a proteção coletiva

Em 2025, o Ministério da Saúde ampliou o Movimento Nacional pela Vacinação, com horários estendidos nas Unidades Básicas de Saúde, ações em escolas e campanhas digitais contra a desinformação.¹⁵ A cobertura vacinal melhorou nas áreas urbanas, mas segue desigual. Outras vacinas infantis, como as contra sarampo e difteria, também estão abaixo da meta, mostrando que o problema não se limita à pólio.¹⁶

A erradicação global da poliomielite está mais próxima do que nunca. Dos três tipos de poliovírus selvagem, dois já foram declarados extintos (2 em 2015 e 3 em 2019); apenas o tipo 1 ainda circula.⁵ Mas o último trecho do caminho costuma ser o mais difícil. Décadas de avanço podem ser perdidas se a vigilância diminuir.

O Brasil tem tudo para continuar livre da pólio: vacinas seguras, um sistema público robusto e uma história de mobilizações exemplares. Falta apenas retomar o engajamento coletivo — para que a criança de 1989 siga sendo, para sempre, a última vítima da poliomielite no país.

Para Levar a Sério

  • O Brasil não registra casos de pólio desde 1989, mas a cobertura vacinal caiu para 86,5% — abaixo dos 95% necessários.
  • Um único caso importado pode deflagrar um surto onde a vacinação está baixa.
  • Cerca de 70% dos infectados não têm sintomas, mas transmitem o vírus silenciosamente.
  • Em menos de 1% dos casos, a pólio causa paralisia permanente. Entre esses, até 10% morrem.
  • Desde novembro de 2024, a vacina oral foi substituída pela injetável (VIP) no Brasil.
  • O esquema completo: três doses (2, 4 e 6 meses) e reforços aos 15 meses e entre 4 e 6 anos.
  • A vacina é gratuita no SUS, segura e oferece mais de 95% de eficácia.
  • A desinformação nas redes sociais contribui para a hesitação vacinal.
  • Verifique a caderneta de vacinação das crianças. Esquema incompleto? Procure a UBS mais próxima.
  • Proteger uma geração inteira depende de cada dose aplicada.

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  1. Ministério da Saúde. Brasil adota novo esquema vacinal contra a poliomielite. 04 nov 2024. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2024/novembro/brasil-adota-novo-esquema-vacinal-contra-a-poliomielite
  2. Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Certificação da erradicação da poliomielite nas Américas. 1994. Disponível em: https://www.paho.org/pt/poliomielite
  3. World Health Organization. Poliomyelitis – Key facts. 02 abr 2025. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/poliomyelitis
  4. Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina. Poliomielite: vacinação é a forma mais eficaz de prevenção. Disponível em: https://www.saude.sc.gov.br
  5. Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Clinical Overview of Poliomyelitis. 10 mai 2024. Disponível em: https://www.cdc.gov/polio/hcp/clinical-overview/index.html
  6. World Health Organization. Poliomyelitis – Key facts. 02 abr 2025. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/poliomyelitis
  7. Centers for Disease Control and Prevention. Clinical Overview of Poliomyelitis. 10 mai 2024. Disponível em: https://www.cdc.gov/polio/hcp/clinical-overview/index.html
  8. Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina. Poliomielite: vacinação é a forma mais eficaz de prevenção. Disponível em: https://www.saude.sc.gov.br
  9. Ministério da Saúde. Cresce número de municípios com mais de 95% de cobertura vacinal. 22 jan 2025. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2025/janeiro
  10. World Health Organization. Statement of the Thirty-ninth Meeting of the Polio IHR Emergency Committee. 13 ago 2024. Disponível em: https://www.who.int/news/item/13-08-2024-statement-of-the-thirty-ninth-meeting-of-the-international-health-regulations-(2005)-emergency-committee-regarding-the-international-spread-of-poliovirus
  11. Centers for Disease Control and Prevention. Update on Vaccine-Derived Poliovirus Outbreaks — Worldwide, January 2023–June 2024. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 17 out 2024; 73(41). Disponível em: https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/73/wr/mm7341a3.htm
  12. Link-Gelles R, Lutterloh E, Ruppert P, et al. Public Health Response to a Case of Paralytic Poliomyelitis — New York, June–August 2022. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 19 ago 2022; 71(33):1065–1068. Disponível em: https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/71/wr/mm7133e2.htm
  13. Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). Calendário de vacinação SBIm 2025/2026 – Do nascimento à terceira idade. 19 ago 2025. Disponível em: https://sbim.org.br/images/calend-sbim-0-100-2025-26-250819.pdf_2025-08-20.pdf
  14. Fiocruz. Boletim de Monitoramento da Desinformação em Saúde. 2024. Disponível em: https://www.icict.fiocruz.br/content/boletim-observat%C3%B3rio-covid-19
  15. Ministério da Saúde. Movimento Nacional pela Vacinação. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/vacinacao
  16. Centers for Disease Control and Prevention. Progress Toward Poliomyelitis Eradication — Worldwide, January 2022–December 2023. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 16 mai 2024; 73(19). Disponível em: https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/73/wr/mm7319a3.htm

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Deborah Lima

Jornalista do Saúde a Sério

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