
O termômetro marca 37,5 °C. Até pouco tempo atrás, esse número seria apenas um “estado febril”. Hoje, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), já é oficialmente considerado febre. A atualização, divulgada em maio de 2025 no documento Abordagem da Febre Aguda em Pediatria e Reflexões sobre a Febre nas Arboviroses,¹ redefine o parâmetro usado por famílias e profissionais de saúde para interpretar esse sintoma tão comum — e, muitas vezes, temido — na infância.
Durante décadas, a febre foi definida como temperatura axilar igual ou superior a 37,8 °C. Agora, o limite passa a ser 37,5 °C quando medida na axila, ou 38 °C por via oral ou retal.¹ A diretriz harmoniza os valores conforme o local da medição e se baseia em estudos que mostram que pequenas variações de temperatura corporal já podem indicar que o organismo está reagindo a uma infecção.¹ O foco deixa de ser o “número mágico” e passa a considerar o quadro clínico e o comportamento da criança.
Um dos principais objetivos da atualização é combater a “febrefobia” — o medo exagerado da febre, que leva pais e cuidadores a procurarem o pronto-socorro ou medicar as crianças desnecessariamente.¹ A SBP lembra que a febre está presente em cerca de 30% das consultas e em dois terços dos atendimentos de emergência pediátrica,¹ mas, na maioria das vezes, é apenas uma resposta de defesa do corpo, não um sinal de gravidade. A elevação da temperatura acelera o metabolismo e estimula o sistema imunológico, favorecendo a produção de anticorpos e ajudando o organismo a combater infecções.²
Quando a febre infantil deixou de ser um número mágico
A nova diretriz desestimula decisões baseadas apenas no valor mostrado pelo termômetro.¹ O ponto de partida deve ser o estado geral da criança. Se, mesmo com 38,5 °C, ela está ativa, brincando e se hidratando bem, não há motivo para medicar apenas para “baixar o número”. Já se estiver abatida, irritada ou sem apetite — mesmo com temperatura mais baixa —, é hora de observar de perto e, se necessário, procurar o pediatra.¹ O termômetro é uma ferramenta; quem indica a gravidade é o comportamento.
A opção pela medição na axila foi adotada como padrão nacional porque é o método mais seguro e de menor risco para crianças.¹ Medições orais ou retais podem trazer variações maiores e dependem de cuidados específicos, o que justifica a padronização pela via axilar com termômetro digital.¹
Febre não é doença — é um sinal de proteção
A febre, por si só, não é uma doença. É um sinal fisiológico de que o corpo está reagindo a uma infecção, geralmente causada por vírus e que tende a se resolver espontaneamente — o que os médicos chamam de “autolimitada”.¹ Estudos reforçam que o uso de antitérmicos deve ter como objetivo o alívio do desconforto, e não eliminar a febre a qualquer custo.²
Quando procurar o pediatra
Algumas situações exigem avaliação imediata: bebês menores de três meses com temperatura igual ou superior a 38 °C (ou igual ou inferior a 35,5 °C); crianças com imunossupressão ou doenças crônicas; febre que dura mais de três dias; ou sintomas como manchas na pele, confusão mental, rigidez no pescoço, dificuldade para respirar, vômitos persistentes, convulsões ou prostração.¹ Mesmo quando a temperatura não é alta, esses sinais indicam a necessidade de atendimento. Observar o estado geral e procurar o pediatra é sempre a conduta mais segura.¹
O medo que adoece: o que é a febrefobia
A febrefobia tem origem em experiências familiares, crenças culturais e informações imprecisas — às vezes transmitidas por fontes bem-intencionadas.¹ O resultado é o uso excessivo de remédios e idas desnecessárias ao pronto atendimento. Pesquisas mostram que muitos cuidadores consideram febre qualquer valor acima de 37 °C e recorrem a combinações de medicamentos sem orientação.⁷ Entender o que a febre realmente representa reduz a ansiedade, melhora a adesão às doses corretas e evita tanto a superdosagem quanto o medo infundado.¹
Fato ou mito: o que a ciência realmente diz sobre a febre infantil
A febre é um dos sintomas mais frequentes da infância — e, talvez por isso, um dos que mais geram dúvidas e interpretações equivocadas. Entre termômetros digitais, remédios de plantão e conselhos populares, mitos antigos ainda moldam o comportamento de muitas famílias diante de um quadro febril. A ciência, porém, mostra que boa parte dessas crenças não se sustenta.
“Toda criança com febre alta corre risco de convulsão.”
Mito. As convulsões febris não são causadas apenas pelo aumento da temperatura. Elas acontecem em crianças com predisposição individual, e o uso de antitérmicos preventivos não reduz a chance de ocorrer.³–⁵
“A febre pode causar danos cerebrais.”
Mito. A febre não queima neurônios nem provoca lesões cerebrais. Mesmo temperaturas em torno de 40 °C não causam dano. O que pode ser perigoso é a hipertermia, quando o corpo perde a capacidade de regular a própria temperatura — o que é diferente da febre infecciosa.
“A febre é amiga.”
Verdade. A elevação da temperatura corporal é uma resposta fisiológica de defesa: torna o ambiente menos favorável à multiplicação de vírus e bactérias e acelera a atuação do sistema imunológico.¹,² Em outras palavras, a febre é um sinal de que o corpo está reagindo.
“A febre é um sintoma, não uma doença.”
Verdade. A febre é uma manifestação do organismo diante de uma agressão, e não uma doença isolada. Tratar a febre sem compreender a causa é como silenciar um alarme sem apagar o incêndio.
“Se eu baixar a febre da criança, ela para de combater a infecção.”
Mito. O uso correto de antitérmicos não atrapalha o sistema imunológico.² O medicamento atua apenas para aliviar o desconforto; o corpo continua reagindo normalmente à infecção.
“Febre alta é sempre sinal de doença grave.”
Mito. A intensidade da febre não indica, sozinha, a gravidade do quadro. Há infecções sérias com febre leve e doenças simples com febre alta. O que deve orientar a decisão é o estado geral da criança.¹
“A febre pode subir indefinidamente.”
Mito. O corpo tem um mecanismo de autorregulação térmica controlado pelo hipotálamo. Quando a temperatura se eleva demais, o cérebro reduz a produção de calor e aumenta a dissipação, impedindo que a febre suba sem limite.
“O uso precoce de antitérmicos pode prolongar a doença.”
Verdade parcial. Quando usados de forma indiscriminada — antes mesmo de desconforto —, os antitérmicos podem mascarar sintomas e atrasar a avaliação médica.² Mas, quando indicados pelo pediatra e usados corretamente, não interferem na recuperação.
“Banhos frios e compressas ajudam a baixar a febre.”
Mito. Esses métodos produzem alívio momentâneo, mas aumentam o desconforto e podem provocar calafrios. Revisões científicas mostram que têm efeito breve e pouca vantagem em relação ao tratamento medicamentoso adequado.⁶
“Alternar medicamentos ajuda a baixar a febre mais rápido.”
Mito. Alternar antitérmicos eleva o risco de erro de dosagem e não traz benefício clínico.⁷ O importante é seguir a dose correta e observar o conforto da criança.²
“Termômetro digital na axila é melhor que o de testa.”
Verdade. A medição axilar continua sendo o método mais confiável e recomendado pela SBP e pela American Academy of Pediatrics.¹,² Termômetros de testa — especialmente os infravermelhos sem contato — são práticos, mas sofrem influência de fatores externos como suor, luz ambiente e distância do sensor, o que pode distorcer os resultados. A leitura na axila, embora leve alguns segundos a mais, é mais estável e reflete com maior precisão a temperatura corporal real.
“Febre por mais de três dias é sinal de alerta.”
Verdade. Febre persistente pode indicar uma infecção que exige avaliação médica.¹ Isso não significa, necessariamente, necessidade de internação, mas o quadro deve ser investigado para descartar causas bacterianas ou inflamatórias.
“Devo correr para o hospital se meu recém-nascido tiver febre.”
Verdade. Em bebês com menos de três meses, febre acima de 38 °C (ou abaixo de 35,5 °C) é motivo de atenção imediata.¹ Nessa idade, o sistema imunológico ainda é imaturo, e a febre pode ser o primeiro sinal de uma infecção relevante.
“A febre sempre exige antibiótico.”
Mito. A maioria dos quadros febris na infância é causada por vírus, e antibióticos não têm efeito sobre eles.¹ O uso inadequado desses medicamentos pode gerar resistência bacteriana e prejudicar tratamentos futuros.
“O comportamento da criança é mais importante que o número no termômetro.”
Verdade. O principal indicador de gravidade é o estado geral. Uma criança brincando com 38,5 °C costuma estar melhor do que uma prostrada com 37,8 °C. O olhar clínico — e não apenas o termômetro — deve guiar as decisões.¹
A atualização da Sociedade Brasileira de Pediatria não cria uma “nova febre”: apenas atualiza os parâmetros e reposiciona a decisão clínica onde sempre deveria estar — na observação da criança, e não apenas no visor do termômetro. A febre é uma resposta natural e protetora do organismo. Na maioria das vezes, é o corpo reagindo de forma eficiente. Observar, hidratar, confortar e, quando necessário, buscar o pediatra: é o que a ciência recomenda.¹,²
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- Sociedade Brasileira de Pediatria. Abordagem da Febre Aguda em Pediatria e Reflexões sobre a Febre nas Arboviroses. Documento Científico nº 206. Maio de 2025. Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/sbp/2025/maio/16/24896f-DC_-Abordag_Febre_Aguda_em_Pediatria_e_Reflexoes_VIRTUAL.pdf
- Sullivan JE, Farrar HC; American Academy of Pediatrics. Fever and Antipyretic Use in Children. Pediatrics. 2011;127(3):580–587. Reaffirmado em 2022. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21357332/
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