Excesso de ácido fólico: distorção silenciosa que pode afetar o cuidado

Embora essencial no início da gestação, o excesso de ácido fólico pode gerar distorções no cuidado pré-natal e exige atenção médica

A suplementação de ácido fólico no início da gestação é uma conduta amplamente respaldada por evidências robustas e incorporada às principais diretrizes de atenção ao pré-natal. Forma sintética do folato, vitamina do complexo B (B9) fundamental para a síntese de DNA, divisão celular e fechamento do tubo neural durante o desenvolvimento embrionário, ele tem seu benefício bem estabelecido.

No entanto, o uso sistemático de doses elevadas — como os cinco miligramas frequentemente prescritos no sistema público brasileiro — exige revisão crítica. A dose importa. E ignorá-la, como vem ocorrendo, é desconsiderar o próprio fundamento da medicina baseada em evidências.

A recomendação é clara — e não somente internacionalmente. Também no Brasil, o documento técnico da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto de Saúde de São Paulo e Ministério da Saúde¹ orienta o uso de 400 microgramas ao dia, iniciados pelo menos um mês antes da concepção e mantidos durante o primeiro trimestre da gestação. Essa conduta é respaldada por instituições como a Organização Mundial da Saúde (OMS)², os Centers for Disease Control and Prevention (CDC)³ e a United States Preventive Services Task Force (USPSTF)⁴.

Casos específicos, como histórico pessoal ou familiar de defeitos do tubo neural, uso de anticonvulsivantes, presença de mutações genéticas específicas ou cirurgia bariátrica, podem justificar doses mais altas¹ — mas são situações clínicas pontuais e bem delimitadas. Mesmo gestantes com condições como hipertensão ou diabetes devem receber a dose padrão conforme essa recomendação.

Apesar disso, a prescrição de cinco miligramas — dose mais de 12 vezes superior à indicada — permanece amplamente difundida no Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se de uma prática que não apenas contraria diretrizes nacionais e internacionais, como também evidencia uma falha de alinhamento entre a política pública e o conhecimento científico consolidado. Essa apresentação sequer é indicada para gestantes. Ela corresponde a uma formulação originalmente destinada ao tratamento de anemias megaloblásticas, mas que passou a ser utilizada no pré-natal por decisão logística: como está disponível nos estoques públicos, foi incorporada de forma generalizada — uma adaptação reconhecida, mas não recomendada, pela própria diretriz nacional¹.

O problema, contudo, é também uma questão ética, que compromete a qualidade da atenção pré-natal. Prescrever com base no que está disponível — e não no que é recomendado — pode parecer um ajuste inofensivo. Mas, quando esse ajuste vira regra, sem questionamento, transforma-se em distorção. E distorções, na medicina, cobram preço. Nem sempre imediato, nem sempre visível — mas real. Ao institucionalizar uma conduta sem respaldo, o risco não está somente em efeitos adversos: está também em anestesiar a crítica, enfraquecer a prática baseada em evidências e normalizar o improviso como se fosse protocolo. É o tipo de acomodação silenciosa que mina a credibilidade do cuidado e expõe pacientes a vulnerabilidades evitáveis.

O parecer conjunto elaborado por Fiocruz, Instituto de Saúde de São Paulo e Ministério da Saúde é enfático: não há justificativa para a manutenção da dose elevada como conduta universal. A prática deve ser revista à luz da literatura científica e da racionalidade terapêutica¹.

Além da ausência de evidências de benefício para esse grupo, estudos recentes apontam potenciais riscos associados ao excesso de ácido fólico durante a gestação. O primeiro, publicado na Epilepsia em 2025, investigou mais de 536 mil mulheres que deram à luz na Noruega e na Suécia entre 2005 e 2018, comparando aquelas que utilizaram ácido fólico em dose elevada (5 mg/dia) com usuárias de multivitamínicos e com não usuárias. O estudo observou um aumento significativo no risco de câncer de mama (HR: 1,25), pulmão (HR: 1,51) e trato urinário (HR: 1,73) entre mulheres que fizeram uso prolongado da dose elevada por pelo menos três meses antes ou depois da gestação⁵. Embora os autores ressaltem que os resultados não permitam estabelecer causalidade, o achado reforça a necessidade de parcimônia e individualização nas condutas.

O segundo estudo, conduzido pelos mesmos pesquisadores e publicado no JAMA Neurology em 2022, avaliou mais de 3,2 milhões de crianças nascidas na Dinamarca, Noruega e Suécia entre 1997 e 2017. A análise revelou que filhos de mulheres com epilepsia que usaram ácido fólico em doses elevadas durante a gestação apresentaram risco 1,7 vez maior de desenvolver câncer infantil, em comparação com filhos de mulheres com epilepsia que não usaram o suplemento em altas doses. Entre os diagnósticos mais associados estavam: leucemia linfoblástica aguda e tumores do sistema nervoso central⁶. O aumento de risco não foi observado em filhos de mulheres sem epilepsia, sugerindo que a interação entre a epilepsia materna e a suplementação em alta dose pode desempenhar um papel relevante na fisiopatologia desses eventos.

Importante esclarecer: os riscos não se aplicam à suplementação dentro da faixa indicada pelas diretrizes. O que os estudos sugerem é que níveis acima do necessário — ou seja, suplementação em excesso, ainda que bem-intencionada — podem ter consequências não previstas.

O que parece simples não pode ser simplificado. A dose não é uma escolha clínica arbitrária — ela é determinada pelas melhores evidências disponíveis. Ignorá-la não é apenas um erro técnico: é abdicar da medicina que se sustenta em dados, protocolos e responsabilidade.

Doses elevadas só devem ser consideradas em situações específicas e respaldadas, como nos casos mencionados anteriormente. O uso indiscriminado da dose de cinco miligramas, embora motivado por boas intenções, carece de base técnica e pode, sim, representar riscos. Não se trata de contestar a importância da suplementação — o ácido fólico continua sendo uma intervenção essencial. Mas, quando uma prática amplamente consagrada é executada de forma imprecisa, ela se desvirtua. E, nesse desvio, o que era cuidado pode se transformar em risco.

A boa medicina exige precisão, não atalhos. O uso generalizado da dose de cinco miligramas é um sintoma de descuido institucionalizado — uma imprudência mascarada de zelo. A dose também importa — e isso não é somente um detalhe técnico. É o divisor entre a boa intenção e a boa prática, entre o cuidado e o risco. Em medicina, ignorar as evidências não é inocência — é negligência.

Referências:
¹ Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto de Saúde de São Paulo, Ministério da Saúde. Suplementação de ácido fólico no pré-natal: aspectos técnicos e recomendações para a prática clínica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/47677/2/IS_MS_folato_2021.pdf

² World Health Organization (WHO). Guidelines on optimal nutrition for women and children. 2012. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789241501996

³ Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Recommendations: Folic Acid. Disponível em: https://www.cdc.gov/ncbddd/folicacid/recommendations.html

⁴ United States Preventive Services Task Force (USPSTF). Folic Acid to Prevent Neural Tube Defects: Preventive Medication. Disponível em: https://www.uspreventiveservicestaskforce.org/uspstf/recommendation/folic-acid-to-prevent-neural-tube-defects-preventive-medication

⁵ Vegrim HM, Dreier JW, Igland J, et al. High-dose folic acid use and cancer risk in women who have given birth: A register-based cohort study. Epilepsia. 2025 Jan;66(1):75–88. doi:10.1111/epi.18146. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/39540679

⁶ Vegrim HM, Dreier JW, Alvestad S, et al. Cancer Risk in Children of Mothers With Epilepsy and High-Dose Folic Acid Use During Pregnancy. JAMA Neurology. 2022 Dec 1;79(12):1137–1146. doi:10.1001/jamaneurol.2022.2815. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/36156660

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Deborah Lima Caramico

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