Álcool corta o efeito do antibiótico ou é apenas um mito sobre medicamentos?

A ciência já sabe que, durante o tratamento, o álcool não corta o efeito da maioria dos antibióticos, mas pode trazer riscos

Tempo de Leitura: 4 minutos

Durante décadas, médicos, farmacêuticos e até familiares transmitiram um alerta quase inquestionável: qualquer gole de bebida alcoólica poderia anular o efeito do antibiótico¹. A recomendação se espalhou e se consolidou como orientação de prudência, repetida de geração em geração. Estudos mostram, porém, que a perda de eficácia do antibiótico associada ao álcool não foi comprovada de forma consistente² ³. O que a literatura destaca é que o verdadeiro risco está nas reações adversas potencializadas por certas combinações, que podem ser graves e justificam a cautela.

Casos emblemáticos são os dos nitroimidazóis, como metronidazol e tinidazol, que podem causar reações graves quando combinados ao álcool. Entre os sintomas mais relatados estão náuseas intensas, vômitos, rubor, cefaleia pulsátil, palpitações, taquicardia e queda abrupta da pressão arterial⁴ ⁵. Em situações extremas, pode haver risco de colapso cardiovascular.

O mecanismo responsável é o acúmulo de acetaldeído, metabólito tóxico do etanol, resultante da inibição da enzima aldeído desidrogenase. Essa reação é praticamente idêntica à provocada pelo dissulfiram — medicamento usado no tratamento do alcoolismo justamente para induzir uma resposta aversiva ao consumo de álcool.

Por essa razão, o consumo concomitante é considerado inseguro mesmo em pequenas quantidades. A recomendação internacional é de abstenção absoluta durante todo o tratamento com metronidazol ou tinidazol, estendendo-se até 48 a 72 horas após a última dose, já que resíduos da droga e de seus metabólitos permanecem ativos no organismo por algum tempo⁴ ⁵.

Outro grupo que merece atenção é o de algumas cefalosporinas, em especial cefotetan, cefoperazona e, em menor grau, cefamandol. Essas moléculas possuem cadeias laterais (grupo N-metiltiotetrazol, NMTT) capazes de interferir no metabolismo do álcool. O mecanismo é semelhante ao dos nitroimidazóis: inibição da aldeído desidrogenase, levando ao acúmulo de acetaldeído no organismo⁶.

As reações descritas incluem rubor, náusea, taquicardia, hipotensão e sensação de calor intenso — em geral menos graves e frequentes que as observadas com metronidazol e tinidazol. Ainda assim, há registros clínicos de desconforto significativo e risco cardiovascular em pacientes suscetíveis. Por isso, diretrizes internacionais recomendam que pacientes em uso dessas cefalosporinas também evitem o álcool. O risco é menor, mas existe, e a prudência justifica a abstinência enquanto durar a terapia.

Já em classes amplamente usadas, como penicilinas e macrolídeos, não há evidências de interações clinicamente relevantes com o álcool². Nesses casos, o risco maior não está em uma interação farmacológica direta, mas sim no impacto do consumo de bebidas sobre o comportamento do paciente.

No Brasil, o Conselho Federal de Farmácia (CFF) reforçou em 2024 que não há justificativa para generalizar o risco de forma indiscriminada — o que não invalida a prudência histórica que norteou orientações mais amplas no passado. Com evidência consolidada, a diretriz atual é comunicar com precisão os antibióticos que exigem abstinência e aqueles em que se recomenda apenas cautela, garantindo segurança sem distorcer a informação⁷. As bulas da Anvisa refletem essa diferenciação, com alertas claros para metronidazol, tinidazol e cefalosporinas implicadas, incluindo a orientação de evitar álcool durante e por até três dias após o tratamento⁸.

Mais do que interação: o álcool pode comprometer a adesão ao tratamento

Outro aspecto relevante é que, mesmo quando não há contraindicação formal, o consumo de álcool pode prejudicar a adesão à terapia antibiótica. Pesquisas demonstram que pacientes que ingerem bebidas alcoólicas durante a antibioticoterapia apresentam maior probabilidade de esquecer doses, atrasar a tomada do medicamento ou até interromper precocemente o regime prescrito⁹ ¹⁰.

Uma revisão sistemática publicada no PLoS One em 2012, conduzida por Bryant e colaboradores, concluiu que o consumo de álcool está associado à pior adesão medicamentosa em diferentes contextos clínicos⁹. Mais recentemente, Keller e colegas, em revisão publicada em 2016 na Addiction Science & Clinical Practice, reforçaram que o álcool atua como fator de risco significativo para a interrupção ou desorganização de regimes terapêuticos — incluindo os antibióticos¹⁰.

Esse comportamento compromete o sucesso terapêutico, já que a eficácia da antibioticoterapia depende da manutenção de concentrações adequadas da droga no organismo. A má adesão pode resultar em falha clínica, recorrência da infecção e ainda favorecer o avanço da resistência bacteriana — um dos maiores desafios de saúde pública da atualidade.

A ciência, portanto, não libera o consumo indiscriminado, mas delimita os cenários em que a interação é realmente perigosa. A recomendação de cautela segue válida: o álcool pode não “cortar” o efeito da maioria dos antibióticos, mas em alguns casos potencializa reações adversas graves — e em outros compromete a adesão ao tratamento, colocando em risco a eficácia e a segurança da terapia.

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  1. Costelloe C, Metcalfe C, Lovering A, Mant D, Hay AD. Effect of antibiotic prescribing in primary care on antimicrobial resistance in individual patients: systematic review and meta-analysis. BMJ. 2010;340:c2096. https://www.bmj.com/content/340/bmj.c2096
  2. Weathermon R, Crabb DW. Alcohol and medication interactions. Alcohol Research & Health. 1999;23(1):40–54. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/10890797/
  3. Nagaoka MR, et al. Interações entre antibióticos e álcool: revisão da literatura. Rev Bras Ter Intensiva. 2002;14(2):94-99. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-507X2002000200005&script=sci_arttext
  4. Visapää JP, et al. Increased levels of acetaldehyde after alcohol intake during metronidazole treatment. Alcohol Clin Exp Res. 2002;26(8):1234–1238. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/12198402/
  5. Williams CS, Woodcock KR. Do ethanol and metronidazole interact to produce a disulfiram-like reaction? Ann Pharmacother. 2000;34(2):255–257. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/10676835/
  6. Visapää JP, et al. Interaction between alcohol and cefotetan: evidence for disulfiram-like reaction. Clin Pharmacol Ther. 1998;63(6):684–692. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/9663180/
  7. Conselho Federal de Farmácia. Nota Técnica nº 02/2024 – Interações medicamentosas com álcool. Brasília: CFF; 2024. https://www.cff.org.br/noticia.php?id=8230
  8. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Bulário eletrônico. https://consultas.anvisa.gov.br/#/bulario/
  9. Bryant KJ, et al. The relationship between alcohol misuse and adherence to medication regimens: a systematic review. PLoS One. 2012;7(12):e50644. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/23272055/
  10. Keller S, et al. The impact of alcohol use on medication adherence: a systematic review. Addict Sci Clin Pract. 2016;11:1. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26727948/

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Deborah Lima

Jornalista do Saúde a Sério

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