Prevalência, fatores de risco e evidências de prevenção e tratamento colocam a saúde mental no centro do debate esportivo
Quando Simone Biles disse “não” nas Olimpíadas de Tóquio, milhões de pessoas ao redor do mundo ficaram chocadas. A maior ginasta da história estava escolhendo sua saúde mental em vez do ouro olímpico¹, mas o que poucos sabiam é que ela estava dando voz a uma condição que afeta até 35% dos atletas de elite²: o burnout.
O episódio não foi apenas sobre uma atleta. A psicóloga do esporte Sophie Isoard-Gautheur, da Universidade Grenoble Alpes (França), especialista em saúde mental e motivação de jovens atletas, conduziu com sua equipe de pesquisa uma metanálise³ que associou o burnout a fatores como perfeccionismo exacerbado, estilo de treinador controlador e especialização precoce, além de riscos aumentados de queda de desempenho, depressão e ideação suicida. Por essa razão, os autores descrevem o fenômeno como uma “epidemia silenciosa”³, capaz de comprometer carreiras e vidas no esporte de alto rendimento.
Desde então, entidades internacionais e nacionais passaram a revisar protocolos de cuidado e comunicação sobre saúde mental no alto rendimento⁴ .
Casos brasileiros e internacionais
No Brasil, casos semelhantes ganharam destaque. Gabriel Medina, principal nome do surfe nacional, interrompeu a carreira por cinco meses para tratar depressão⁵. Flávia Saraiva, destaque da ginástica artística, relatou crises de ansiedade e insônia que impactaram treinos e competições⁶. Esses episódios refletem uma cultura que frequentemente prioriza resultados em detrimento do bem-estar.
Outros casos internacionais também ampliaram o debate. Naomi Osaka, tenista japonesa, abandonou Roland Garros devido à ansiedade associada às entrevistas coletivas⁷. Michael Phelps, maior medalhista olímpico da história, revelou episódios de depressão pós-olímpica e pensamentos suicidas⁸. Hoje, atua como defensor da saúde mental.
A união dessas histórias — internacionais e nacionais — deu visibilidade inédita à necessidade de integrar saúde mental no cuidado esportivo.
Evidências científicas
O burnout é um estado de esgotamento físico e emocional que vai além do simples cansaço. Pesquisadores utilizam instrumentos validados, como o Athlete Burnout Questionnaire (ABQ), desenvolvido pelos psicólogos Thomas Raedeke e Alan Smith⁹. Esse questionário avalia três dimensões principais: exaustão persistente, perda de confiança e queda do prazer no esporte. Atletas relatam sensação de prisão diante daquilo que antes era paixão. O corpo deixa de responder, a performance pode cair até 23%³ — na prática, isso significa perda de precisão técnica e aumento de erros decisivos, com repercussão em resultados de temporadas inteiras.
No mesmo trabalho conduzido por Isoard-Gautheur³, observou-se que a prevalência de burnout clinicamente significativo varia entre 6% e 11% dos atletas. Entre jovens atletas em nível competitivo³, a taxa chega a 9%. A condição é mais comum em modalidades individuais, com 2,3 vezes mais casos que esportes coletivos. Estudos também sugerem que mulheres atletas relatam índices mais elevados de burnout do que homens, possivelmente devido a múltiplas pressões competitivas e sociais². Fatores de risco incluem perfeccionismo (67% mais chance) e treinadores controladores (risco 340% maior); especialização precoce (antes dos 12 anos) também aumenta vulnerabilidade.
As consequências vão além da queda de desempenho. Conforme a revisão de Henrik Gustafsson² e o trabalho de Isoard-Gautheur³, atletas com burnout apresentam 15–20% menos precisão técnica, 40% mais erros e até 85% mais risco de lesões. Psicologicamente, há aumento de 4,2 vezes no risco de depressão e quase quatro vezes mais chances de pensamentos suicidas. Isso significa que, em cada dez atletas com burnout, até quatro podem desenvolver quadros depressivos, aumentando o risco de afastamento ou abandono do esporte. Esses dados ganham ainda mais relevância no contexto do Setembro Amarelo, campanha de prevenção ao suicídio no Brasil ao longo do mês de setembro.
Tratamento e prevenção
Embora grave, o burnout responde a intervenções comprovadas. Frode Moen, da Norwegian University of Science and Technology, identificou eficácia da terapia cognitivo-comportamental em 8–12 semanas⁹. Programas de mindfulness, estudados por Amy Baltzell (Boston University) e Vicki Akhtar⁹, podem reduzir sintomas em até 35% em dois meses. Revê-se também a carga de treinos: protocolos sugerem proporção 3:1 (treino:recuperação), conforme Kellmann e Beckmann¹⁰.
A prevenção exige mudança cultural. O consenso do Comitê Olímpico Internacional, coordenado por Charles Reardon e Arjmand Bindra⁴, recomenda que treinadores priorizem processos, com liderança empática.
No Brasil, o Programa de Saúde Mental do COB¹¹ estruturou eixos práticos de atuação: acolhimento psicológico imediato, triagem periódica, inclusão de psicólogos nas seleções, campanhas contra o estigma, canais de escuta ativa e suporte especializado em competições. A saúde mental passou a ser componente permanente do cuidado ao atleta.
Um novo paradigma
Ferramentas digitais também integram o debate sobre saúde mental no esporte. Estudos mostram que vestíveis podem monitorar sono, variabilidade cardíaca e estresse físico; plataformas remotas de acompanhamento psicológico e programas de meditação guiada auxiliam na autorregulação emocional. Porém, esses recursos devem ser vistos apenas como complementos — não substitutos — de políticas estruturadas e acompanhamento profissional, evitando sobrecarga individual.
A partir dos relatos de Biles, Osaka e Phelps, o esporte mundial passou a reconhecer a saúde mental como prioridade. A busca por medalhas começa a ser equilibrada com valorização do bem-estar. Atletas deixam de ser máquinas de performance e passam a ser valorizados em sua integralidade humana.
O burnout atlético é prevenível e tratável quando treinadores, famílias e organizações cooperam. Construir ambientes que promovam excelência sem sacrificar a saúde é o desafio da nova era esportiva. Afinal, o esporte deve realizar sonhos — não destruí-los.
Precisa de ajuda? Procure um psicólogo esportivo.
Emergência: Se houver pensamento suicida, ligue 188 para o CVV ou busque atendimento médico imediato.
Referências
- BBC. Simone Biles withdraws from Olympic final to prioritise mental health. https://www.bbc.com/sport/olympics/57982665
- Gustafsson H, et al. Athlete burnout: review and recommendations. Current Opinion in Psychology. 2017. DOI: https://doi.org/10.1016/j.copsyc.2017.05.002
- Isoard-Gautheur S, et al. Predictors of burnout in young athletes: a systematic review and meta-analysis. International Review of Sport and Exercise Psychology. DOI: https://doi.org/10.1080/1750984X.2019.1578252
- Reardon CL, Bindra A, et al. Mental health management of elite athletes: IOC consensus statement. British Journal of Sports Medicine. DOI: https://doi.org/10.1136/bjsports-2019-100715
- G1 Esporte. Gabriel Medina anuncia pausa para cuidar da saúde mental. https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2022/01/24/gabriel-medina-anuncia-pausa-para-cuidar-da-saude-mental.ghtml
- Folha de S.Paulo. Flávia Saraiva relata crise de ansiedade em preparação olímpica. https://www1.folha.uol.com.br/esporte/olimpiada/2021/07/flavia-saraiva-relata-crise-de-ansiedade-em-preparacao-olimpica.shtml
- The Guardian. Naomi Osaka withdraws from French Open citing mental health concerns. https://www.theguardian.com/sport/2021/may/31/naomi-osaka-withdraws-french-open-mental-health-tennis
- CNN. Michael Phelps opens up about depression and suicidal thoughts. https://edition.cnn.com/2018/01/19/health/michael-phelps-depression-suicide-thoughts
- Raedeke TD, Smith AL. Development and preliminary validation of an athlete burnout measure. Journal of Sport and Exercise Psychology. DOI: https://doi.org/10.1123/jsep.23.4.281
- Kellmann M, Beckmann J. Sport, recovery, and performance: Interdisciplinary insights. Routledge. https://www.routledge.com/Sport-Recovery-and-Performance-Interdisciplinary-Insights/Kellmann-Beckmann/p/book/9781138735843
- COB. COB lança programa de saúde mental para atletas. https://www.cob.org.br/pt/cob/comunicacao/noticias/cob-lanca-programa-de-saude-mental-para-atletas/