Metanol em bebidas: o risco que não aparece no primeiro gole

Sintomas da intoxicação por metanol podem demorar a surgir e, quando o diagnóstico atrasa, aumentam drasticamente a mortalidade e a chance de cegueira

Poucos mililitros podem ser suficientes para transformar um momento de lazer em uma tragédia. O metanol, um tipo de álcool altamente tóxico que pode estar presente em bebidas adulteradas, engana o corpo porque se parece com o etanol, o álcool comum encontrado em cerveja, vinho ou destilados. A diferença é que, ao entrar no organismo, não vira energia nem compostos inofensivos: se converte em produtos perigosos que se acumulam no sangue e deixam o corpo mais ácido, prejudicando o funcionamento dos órgãos. Essa reação ajuda a explicar por que a visão é uma das primeiras funções a ser atingida, já que o nervo dos olhos é extremamente sensível a essas substâncias — e pode levar à perda súbita e irreversível da capacidade de enxergar.¹

Pesquisas mostram que mesmo pequenas quantidades podem ser suficientes para causar sérios problemas. Uma revisão publicada em 2015 analisou surtos de intoxicação por metanol em diferentes países, da Europa ao Oriente Médio e à África.³ O levantamento mostrou que a ingestão de 30 a 100 mililitros — o equivalente a dois ou três goles de uma bebida altamente contaminada — esteve associada a taxas de morte superiores a 40% se o tratamento demorava a ser iniciado.

Um estudo mais recente, publicado em 2024 no BMC Emergency Medicine, analisou um surto no Irã e reforçou esses achados.² Os pesquisadores observaram que somente 10 a 30 mililitros — menos que meio copo pequeno de destilado — já podiam causar danos irreversíveis à visão. Em doses mais altas, aumentava também a probabilidade de morte. O mesmo estudo destacou que, entre os pacientes atendidos rapidamente, a mortalidade caiu para cerca de 17% e as chances de preservar a visão foram bem maiores.² A gravidade, segundo os autores, está ligada também ao atraso dos sintomas: como eles só se manifestam horas depois da ingestão, muitas pessoas procuram ajuda quando o quadro já está avançado.³

Sintomas podem se confundir com ressaca

Esse atraso é o que torna a intoxicação por metanol especialmente perigosa. Os sinais costumam se desenvolver entre 12 e 24 horas após o consumo e, no início, podem ser confundidos com uma ressaca comum.² A pessoa pode sentir dor de cabeça intensa, enjoo, vômito e dor abdominal. Com o avanço, surgem alterações na visão, falta de ar, convulsões e, em casos graves, coma. Ao contrário da ressaca, esses sintomas não desaparecem sozinhos.

Tratamento e antídotos disponíveis

O tratamento da intoxicação por metanol é considerado uma emergência médica. Ele se apoia em três pontos principais: corrigir o desequilíbrio no sangue, impedir que o metanol continue se transformando em compostos nocivos e eliminar do corpo aquilo que já foi produzido.¹ Em países da Europa e nos Estados Unidos, o antídoto mais utilizado é o fomepizol, que bloqueia a ação do metanol no organismo.² No Brasil, por muitos anos, a alternativa disponível foi o uso de etanol na veia, que compete com o metanol e reduz a produção das substâncias tóxicas.³

Nesta semana, a Anvisa anunciou a ampliação dos estoques estratégicos de fomepizol, permitindo que hospitais de referência solicitem o medicamento em casos graves.⁴ A agência explicou que a medida busca dar mais rapidez ao acesso ao antídoto e reduzir o número de mortes por envenenamento por metanol. Em qualquer cenário, a hemodiálise — tratamento que filtra o sangue por meio de máquinas — continua sendo fundamental para retirar rapidamente o metanol e o ácido formado a partir dele.³ A combinação entre diagnóstico rápido, uso do antídoto e diálise, quando necessária, é o que realmente faz a diferença entre preservar a vida e sofrer sequelas graves.²

Produção controlada x bebidas clandestinas

A legislação brasileira também define parâmetros de segurança para as bebidas alcoólicas. O metanol pode aparecer em pequenas quantidades já na fermentação, etapa comum a todas as bebidas, como cerveja, vinho, cachaça ou uísque. No caso dos destilados, o perigo aumenta se a destilação não for bem feita, porque as primeiras e últimas partes do líquido concentram mais metanol e precisam ser descartadas.⁵ Em produções legalizadas, esse controle é obrigatório e só as bebidas que passam nos testes de laboratório chegam ao público. Por isso, pequenas quantidades de metanol são esperadas e não representam ameaça quando a produção segue boas práticas. O risco maior está nas bebidas clandestinas, que não são fiscalizadas e podem conter concentrações muito acima do aceitável, tornando-se fonte concreta de intoxicação.

Outro ponto crítico é que o metanol não pode ser identificado pelo gosto ou pelo cheiro, já que é praticamente igual ao etanol nessas características.³ Isso significa que nem mesmo pessoas experientes conseguem perceber quando uma bebida está adulterada, a não ser por análise de laboratório — o que reforça a importância da fiscalização.

Um problema global de saúde pública

O que esses estudos deixam claro é que a intoxicação por metanol não é um caso isolado ou restrito a um país: trata-se de um problema que já se repetiu em diferentes partes do mundo.²,³ A ciência mostra que poucas doses já são suficientes para causar sequelas graves e que só a combinação entre produção controlada, fiscalização efetiva e diagnóstico rápido pode reduzir o impacto desse álcool invisível — invisível ao paladar e ao olfato, mas com efeitos muito concretos no organismo. Trazer esses dados para o debate é essencial para transformar episódios esporádicos em informação pública, capaz de orientar práticas mais seguras e dar à população consciência sobre um risco que continua atual.

Referências

  1. Sanaei-Zadeh H, et al. Clinical presentation and management of methanol poisoning. BMC Emergency Medicine, 2024. Disponível em: https://bmcemergmed.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12873-024-00976-1
  2. Zakharov S, et al. Methanol outbreaks: a global epidemiological and clinical overview. Annals of Emergency Medicine, 2015. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25818464/
  3. Barceloux DG, et al. Methanol Toxicity. NCBI Bookshelf – StatPearls, atualizado em 2024. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK482121/
  4. Anvisa. Anvisa amplia estoques estratégicos de fomepizol para intoxicação por metanol. Brasília, 3 out. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2025/anvisa-amplia-estoques-fomepizol
  5. MAPA. Regulamento Técnico da Cachaça. Portaria MAPA nº 539/2022. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/inspecao/produtos-vegetal/bebidas/legislacao

Redação Saúde a Sério

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