
Ronco alto, pausas na respiração durante a noite e cansaço extremo mesmo após horas de sono. Esses sintomas caracterizam a apneia obstrutiva do sono, um distúrbio no qual a respiração é interrompida repetidamente durante o repouso. O mecanismo é direto: os músculos da garganta relaxam excessivamente, bloqueando a passagem do ar e provocando quedas nos níveis de oxigênio no sangue.¹ Essas pausas podem se repetir mais de 30 vezes por hora — centenas de vezes por noite. O resultado vai além do cansaço crônico: a condição triplica o risco de morte cardiovascular¹ e está relacionada à hipertensão, diabetes e até a acidentes de trânsito causados por sonolência.
A relação entre obesidade e apneia é o ponto central dessa história. Estudos mostram que cerca de 70% das pessoas com excesso de peso apresentam algum grau do distúrbio.² O acúmulo de gordura na região do pescoço, língua e palato mole estreita a passagem do ar. Quando os músculos relaxam durante o sono, esse tecido adiposo facilita o colapso das vias aéreas, bloqueando a respiração.² É justamente por atacar essa causa — a gordura que obstrui — que um medicamento para emagrecimento pode tratar o problema.
Até outubro de 2025, não existia terapia medicamentosa aprovada para essa condição no Brasil. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mudou esse cenário ao autorizar o uso do Mounjaro (tirzepatida) para apneia obstrutiva do sono em adultos com obesidade.⁴ Trata-se do primeiro fármaco aprovado especificamente para essa finalidade no país. Os Estados Unidos haviam aberto o precedente em dezembro de 2024, quando a Food and Drug Administration (FDA) — agência reguladora norte-americana — aprovou a tirzepatida (sob o nome comercial Zepbound) para a mesma indicação, tornando-se o primeiro país do mundo a fazê-lo.⁶
A aprovação brasileira baseia-se em estudos científicos publicados em outubro de 2024 na revista The New England Journal of Medicine.² Os pesquisadores avaliaram 469 voluntários com obesidade e apneia moderada a grave durante 12 meses. Parte deles não utilizava nenhuma intervenção, enquanto outra parte já fazia uso do CPAP (aparelho de pressão positiva contínua nas vias aéreas, tratamento padrão). Todos receberam, de forma aleatória, doses semanais de tirzepatida ou placebo.
Os resultados foram expressivos. Entre os pacientes que não usavam CPAP, a tirzepatida reduziu em média 25 interrupções respiratórias por hora, comparado a apenas 5 interrupções a menos no grupo placebo. Entre aqueles que já utilizavam o CPAP, a melhora foi ainda maior: 29 interrupções a menos por hora com tirzepatida, versus 5 com placebo. Em termos percentuais, houve redução de até 63% no número de pausas respiratórias.²
Além da melhora na apneia, os pacientes perderam entre 18% e 20% do peso corporal ao longo de um ano. Essa perda substancial é o principal mecanismo de ação: os pesquisadores não encontraram evidências de efeito direto da tirzepatida sobre as vias aéreas; o benefício vem da redução de gordura nas estruturas que causam a obstrução.² Exames de ressonância magnética confirmaram a diminuição de gordura na língua, associada à melhora da passagem do ar durante o sono.²
Os benefícios aparecem de forma progressiva, conforme o paciente perde peso. Embora os estudos tenham durado um ano completo, melhoras nas interrupções respiratórias podem ser observadas já entre três e quatro meses de uso, dependendo da resposta individual.² O efeito máximo tende a ocorrer após vários meses de tratamento contínuo.
Um dado relevante: metade dos participantes atingiu critérios para resolução da doença — definida como menos de 15 interrupções por hora. Em alguns casos, a melhora permitiu reduzir ou até suspender o uso do CPAP, sempre sob orientação médica e com acompanhamento por exame de sono.²
Quem pode usar o medicamento?
A indicação é específica. O Mounjaro está aprovado para adultos com obesidade — IMC (índice de massa corporal) igual ou superior a 30 — ou sobrepeso (IMC igual ou superior a 27) associado a outras doenças, diagnosticados com apneia obstrutiva do sono moderada a grave. O diagnóstico deve ser feito por polissonografia, o exame que monitora o sono.
O medicamento não é indicado para pessoas com apneia que têm peso normal. Nesses casos, a obstrução geralmente ocorre por fatores anatômicos — como queixo retraído, amígdalas aumentadas ou alterações na estrutura facial — e o CPAP permanece como tratamento de escolha.³
Vale destacar que o Mounjaro já era aprovado no Brasil desde setembro de 2023 para diabetes tipo 2 e, desde junho de 2025, para obesidade e sobrepeso com doenças associadas. A aprovação para apneia representa uma ampliação dessas indicações.
Benefícios além da respiração
Os estudos documentaram melhorias secundárias importantes. Pacientes tratados com tirzepatida apresentaram redução na privação de oxigênio durante o sono, indicador associado ao risco cardiovascular. Houve também queda em marcadores de inflamação relacionados a doenças cardíacas e diminuição da pressão arterial. A qualidade do sono melhorou, com menos despertares noturnos e menor sonolência diurna.²
Além da melhora respiratória, os autores observaram impacto positivo em parâmetros metabólicos: redução de glicemia, melhora no perfil lipídico e controle mais efetivo do peso, reforçando o papel do medicamento na saúde global de pacientes com obesidade e apneia.
Limitações e quando considerar outras opções
O Mounjaro não substitui completamente os tratamentos convencionais para apneia. Para pacientes com obesidade grave (IMC igual ou acima de 40, ou acima de 35 com doenças graves associadas), a cirurgia bariátrica pode ser mais indicada por proporcionar perda de peso mais substancial e duradoura. A escolha entre medicamento e cirurgia deve considerar o grau de obesidade, a presença de outras doenças, as preferências do paciente e uma avaliação individualizada de riscos e benefícios.³
Estudos indicam que, após a interrupção do tratamento, parte do peso perdido pode ser recuperada — o que tende a trazer de volta parte dos sintomas respiratórios. Por isso, a terapia deve integrar uma abordagem mais ampla, com mudanças na alimentação e prática regular de atividade física. Em muitos casos, especialmente nos mais graves, o CPAP continua necessário em conjunto com o medicamento.
O CPAP continua sendo o tratamento-padrão: o aparelho mantém as vias respiratórias abertas durante o sono por meio de um fluxo constante de ar.³ Apesar de sua eficácia, muitos pacientes relatam desconforto com a máscara, sensação de sufocamento e dificuldade de adaptação, o que leva à baixa adesão. Outras alternativas incluem dispositivos que reposicionam a mandíbula e, em casos específicos, cirurgias ou acompanhamento fonoaudiológico para fortalecer a musculatura da garganta.
A Anvisa implementou medidas rigorosas para garantir o uso responsável. Desde 2025, as farmácias passaram a reter a receita médica na compra do Mounjaro, medida que busca coibir o uso indiscriminado para fins estéticos. A automedicação com esse tipo de fármaco representa risco significativo, especialmente após a popularização das chamadas “canetas emagrecedoras” usadas sem orientação médica.
O surgimento dessa opção farmacológica representa um avanço importante para milhões de brasileiros com apneia do sono associada à obesidade. No entanto, não elimina a necessidade de mudanças no estilo de vida, acompanhamento médico contínuo e, em muitos casos, uso do CPAP. A decisão sobre o melhor tratamento deve ser sempre individualizada e baseada em diagnóstico preciso por exame de sono.
Para Levar a Sério
- A apneia obstrutiva do sono é mais do que ronco: ela causa pausas repetidas na respiração e pode triplicar o risco de morte cardiovascular.
- Sete em cada dez pessoas com obesidade têm algum grau do distúrbio. O excesso de gordura no pescoço e na língua estreita as vias respiratórias durante o sono.
- A tirzepatida (Mounjaro) é o primeiro medicamento aprovado pela Anvisa para tratar apneia do sono associada à obesidade.
- O remédio promove perda de até 20% do peso corporal, o que reduz a gordura que obstrui as vias aéreas e melhora o fluxo de ar durante o sono.
- Em estudos clínicos, houve redução de até 63% nas pausas respiratórias e melhora da oxigenação noturna.
- Metade dos pacientes tratados atingiu critérios de resolução da doença, alguns conseguindo suspender o uso do CPAP, com acompanhamento médico.
- O tratamento exige acompanhamento contínuo e deve ser aliado a alimentação equilibrada e prática de atividade física.
- Mesmo com novas terapias, o CPAP segue como tratamento-padrão e pode ser combinado ao medicamento.
- O avanço representa um marco na medicina do sono, com potencial para transformar a qualidade de vida de quem sofre com apneia e obesidade.
Anvisa Ciência e Saúde Câncer de Mama demência demência frontotemporal desinformação em saúde diabetes tipo 2 diagnóstico da demência diagnóstico precoce evidências científicas Infarto medicina baseada em evidências OMS pediatria prevenção cardiovascular Reposição Hormonal Saúde a Sério SaúdeCardiovascular Saúde com responsabilidade saúde da mulher saúde do coração saúde infantil Saúde masculina saúde materna saúde mental saúde pública terapia hormonal menopausa câncer de mama tratamento da demência trombose trombose venosa profunda
- Young T, Palta M, Dempsey J, et al. The occurrence of sleep-disordered breathing among middle-aged adults. N Engl J Med. 1993;328(17):1230-1235.
DOI: 10.1056/NEJM199304293281704
Link direto: https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJM199304293281704 - Malhotra A, Grunstein RR, Fietze I, et al. Tirzepatide for the treatment of obstructive sleep apnea and obesity. N Engl J Med. 2024;391(13):1193-1205.
DOI: 10.1056/NEJMoa2404881
Link direto: https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2404881 - Epstein LJ, Kristo D, Strollo PJ Jr, et al. Clinical guideline for the evaluation, management and long-term care of obstructive sleep apnea in adults. J Clin Sleep Med. 2009;5(3):263-276.
Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2699173/ - Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Resolução-RE nº 4.117, de 17 de outubro de 2025. Diário Oficial da União. 20 out 2025;Seção 1:112.
(Documento oficial da Anvisa; disponível em: https://www.gov.br/anvisa) - Benjafield AV, Ayas NT, Eastwood PR, et al. Estimation of the global prevalence and burden of obstructive sleep apnoea: a literature-based analysis. Lancet Respir Med. 2019;7(8):687-698.
DOI: 10.1016/S2213-2600(19)30198-5
Link direto: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2213260019301985 - U.S. Food and Drug Administration (FDA). FDA approves first medication for obstructive sleep apnea [Internet]. Silver Spring: FDA; 2024 [cited 2025 Oct 21].
Disponível em: https://www.fda.gov/news-events/press-announcements/fda-approves-first-medication-obstructive-sleep-apnea