
Você já ouviu falar em “dentista biológico”? O termo se espalhou pelas redes sociais embalado por vídeos que prometem soluções “naturais”, livres de “toxinas” e supostamente mais seguras para o corpo inteiro. Essas publicações chamam atenção porque simplificam assuntos complexos e apresentam ideias antigas como se fossem descobertas recentes. Apesar disso, boa parte do que circula não tem amparo em odontologia baseada em evidências.
Um exemplo claro é a teoria da focal infection, formulada no início do século passado. Segundo ela, infecções na boca poderiam desencadear doenças em outras partes do corpo. A hipótese chegou a justificar a extração de dentes saudáveis como forma de prevenção. Com o tempo, as pesquisas demonstraram que essa relação direta não existe: dentes tratados adequadamente, restaurações bem indicadas e procedimentos odontológicos comuns não provocam doenças sistêmicas.¹
A conexão entre boca e organismo, porém, é real — apenas não da forma apresentada em vídeos alarmistas. A endocardite infecciosa pode ter origem em infecções bucais verdadeiras, especialmente quando há procedimentos mal-executados, ausência de tratamento ou doença periodontal avançada.² Esse cenário documentado em diretrizes médicas não se compara às alegações que envolvem dentes com canal, restaurações antigas ou materiais amplamente estudados.
Mesmo desacreditada, a teoria reaparece nas redes com novos termos. Expressões como “inflamação silenciosa”, “metais tóxicos” e “detox dentário” são usadas para justificar interpretações distorcidas de pesquisas. O “detox dentário” não corresponde a nenhum procedimento reconhecido; trata-se de um termo de marketing sem validação científica. Nesse ambiente, o tratamento de canal — indicado para controlar infecções internas e preservar dentes — tornou-se alvo recorrente de desinformação. Em vídeos, ele é apresentado como possível gatilho de doenças graves, algo sem respaldo em revisões independentes nem em documentos técnicos de entidades profissionais.³
Doença periodontal, circulação e hormônios: o que realmente se sabe
A discussão também alcança a doença periodontal, condição que envolve processo inflamatório da gengiva e pode resultar em perda óssea ao redor dos dentes. Embora não tenha relação com o tratamento de canal, os dois temas costumam aparecer misturados nas redes. Em algumas publicações, a perda óssea é atribuída à queda de testosterona, associação que não aparece na literatura científica.
O que se conhece é um fenômeno distinto: a doença periodontal desencadeia um processo inflamatório persistente capaz de alterar o funcionamento dos vasos sanguíneos. Por isso, alguns pesquisadores investigam sua possível ligação com condições sistêmicas como a disfunção erétil. A hipótese envolve os efeitos da inflamação prolongada sobre a circulação, e não alterações hormonais isoladas.⁴ Esse mecanismo também ajuda a explicar por que infecções bucais reais e não tratadas podem, em casos específicos, contribuir para quadros graves como a endocardite. Em todos esses cenários, o fator determinante é a presença de infecção ativa — não procedimentos odontológicos de rotina.
Amálgama dental e a persistência de um mito antigo
A discussão sobre amálgama dental também ganhou força nas redes. O material, usado por décadas em restaurações, voltou ao centro do debate digital. Embora parte do público manifeste preocupação com a presença de mercúrio em sua composição, avaliações científicas internacionais indicam que restaurações de amálgama já instaladas não representam risco comprovado.⁵
A remoção desse material sem indicação clínica pode causar desgaste do dente, sensibilidade prolongada, fraturas e necessidade de tratamentos mais complexos. Ainda assim, circulam conteúdos que defendem “desintoxicação bucal” ou suplementos destinados a eliminar “metais”, termos comuns em estratégias de marketing digital e sem base científica. Assim como “detox dentário”, não fazem parte de recomendações clínicas reconhecidas.
Quando a desinformação influencia decisões de saúde
O impacto desse tipo de conteúdo não fica restrito às redes sociais. Profissionais relatam pacientes que adiam tratamentos importantes, solicitam extrações sem indicação ou pedem substituições de restaurações funcionais por receio de supostas “toxinas”. A relação entre saúde bucal e saúde geral existe, é estudada há décadas e precisa ser comunicada com precisão. Quando conceitos científicos são apresentados sem contexto, o resultado costuma ser confusão e insegurança.
A velocidade com que informações distorcidas circulam reforça a importância de conteúdos claros, contextualizados e baseados em evidências. Explicar o que se sabe, o que ainda está em investigação e o que não tem comprovação ajuda o leitor a navegar por temas complexos sem cair em interpretações enganosas. Em um ambiente saturado de ruído, desconfiar de explicações simplificadas e discursos alarmistas se torna uma forma de proteção.
Informação bem construída fortalece decisões de saúde mais seguras e reduz o espaço para que o medo se transforme em tratamento.
Para Levar a Sério
- “Dentista biológico” não é uma especialidade reconhecida nem uma prática sustentada por evidências.
- Teorias antigas, como a focal infection, não explicam doenças sistêmicas e já foram descartadas pela ciência.
- Infecções reais na boca podem agravar quadros como endocardite, mas isso não tem relação com dentes com canal ou restaurações.
- Doença periodontal influencia a saúde geral pela inflamação sistêmica, não por alterações hormonais isoladas.
- Amálgamas antigos não representam risco comprovado e removê-los sem indicação pode causar dano.
- Termos como “detox dentário” não fazem parte de nenhuma recomendação clínica baseada em evidências.
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- Pallasch TJ, Wahl MJ. The focal infection theory: appraisal and reappraisal. J Calif Dent Assoc. 2000;28(3):194–200. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/11326533/
- Wilson W, Taubert KA, Gewitz M, et al. Prevention of Infective Endocarditis: Guidelines From the American Heart Association. Circulation. 2007;116(15):1736–1754. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17446442/
- American Association of Endodontists. Root Canal Safety: Clinical Considerations and Scientific Evidence. 2023. Disponível em: https://www.aae.org/specialty/wp-content/uploads/sites/2/2023/10/RootCanalSafety_v1.pdf
- Silva N, Dutzan N, Hernandez M, et al. Periodontal diseases and systemic inflammation: mechanisms and clinical implications. Periodontol 2000. 2021;87(1):123–149. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33783871/
- Scientific Committee on Emerging and Newly Identified Health Risks. The Safety of Dental Amalgam and Alternative Dental Restoration Materials. European Commission; 2015. Disponível em: https://ec.europa.eu/health/scientific_committees/emerging/docs/scenihr_o_046.pdf