
Falar sobre menopausa é revisitar um dos episódios mais marcantes — e controversos — da medicina moderna: o Women’s Health Initiative (WHI). Publicado em 2002, o estudo americano avaliou os efeitos da terapia de reposição hormonal sobre o risco cardiovascular em mulheres após a menopausa. Os resultados, porém, foram interpretados e divulgados de forma equivocada, dando origem a um dos maiores mal-entendidos científicos das últimas décadas.
O WHI associou a terapia hormonal combinada a um possível aumento do risco de câncer de mama¹, provocando alarde entre médicos e pacientes. A notícia se espalhou rapidamente, as prescrições caíram e o medo se instalou. A reposição hormonal passou a ser tratada como ameaça, e milhões de mulheres deixaram de ter acesso a um tratamento para os sintomas da menopausa — como ondas de calor, secura vaginal, perda de libido e sarcopenia, a perda gradual de massa muscular.
O estudo, entretanto, apresentava limitações importantes. A maioria das participantes estava fora da chamada janela de oportunidade — os dez anos após a última menstruação, período em que a terapia hormonal costuma oferecer o melhor perfil de segurança¹. A média de idade era de 60 anos, e muitas mulheres tinham obesidade ou condições que contraindicam o uso de hormônios. Outro grupo, formado por mulheres sem útero que receberam apenas estrogênio, mostrou o oposto: houve redução no risco de câncer de mama².
Anos depois, novas análises revelaram que o aumento de risco estava restrito às mulheres que iniciaram o tratamento muito tempo após a menopausa³. Mesmo com essa revisão, o medo persistiu. A terapia hormonal passou a ser evitada, inclusive por quem poderia se beneficiar dela.
FDA revisa alertas e muda o tom sobre a terapia hormonal
Vinte anos após o impacto do WHI, a Food and Drug Administration (FDA) — agência reguladora dos Estados Unidos — decidiu corrigir o curso. Em novembro de 2025, anunciou a retirada das tarjas pretas das bulas de medicamentos hormonais usados no tratamento da menopausa⁴.
Diferentemente do Brasil, onde a expressão “tarja preta” indica substância controlada, nos Estados Unidos ela se refere a um aviso em destaque na bula, reservado a alertas de risco máximo. Essas advertências haviam sido incluídas após a repercussão do estudo e permaneceram por mais de vinte anos.
A FDA reconheceu que as bulas continham linguagem genérica e desproporcional. A nova medida não elimina alertas, mas os torna mais precisos e condizentes com o conhecimento científico atual⁴.
Pesquisas publicadas ao longo das últimas duas décadas indicam que os riscos da terapia hormonal dependem de fatores individuais³. Idade, tempo desde a menopausa, tipo de hormônio e forma de administração interferem diretamente na segurança do tratamento. Mulheres que iniciam a reposição hormonal pouco tempo após a última menstruação — especialmente antes dos 60 anos — tendem a apresentar menos eventos cardiovasculares e maior melhora dos sintomas.
Entre as diferentes formulações, o estrogênio vaginal se destaca por ter absorção mínima no organismo, o que reduz significativamente o risco de efeitos adversos³.
A FDA manteve apenas a orientação de cuidado para mulheres com útero que usam estrogênio isolado, já que o uso prolongado sem progestagênio (hormônio que protege o revestimento do útero) pode aumentar a chance de câncer de endométrio (câncer do revestimento interno do útero)⁴. Fora dessa situação, o órgão concluiu que as advertências anteriores não refletiam o equilíbrio real entre riscos e benefícios.
A mudança foi recebida com apoio do American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), que destacou a importância de restabelecer o diálogo médico-paciente e facilitar o acesso à informação correta sobre a terapia hormonal⁵.
O que muda para mulheres e médicos
A retirada das tarjas não significa liberação irrestrita da reposição hormonal, mas uma atualização essencial. A decisão devolve às mulheres e aos profissionais de saúde a possibilidade de discutir o tratamento com base em evidência científica, não em medo. Cada caso deve ser avaliado individualmente, considerando sintomas, histórico clínico e preferências pessoais.
Mais do que revisar bulas, é hora de fortalecer o diálogo nas consultas. Médicas e pacientes precisam falar abertamente sobre riscos, benefícios e limites do que já se sabe. A medida da FDA marca um ponto de virada: o início de uma nova fase, em que o conhecimento atual e a comunicação responsável andam lado a lado.
Entre o medo e a evidência
A decisão da FDA representa mais que uma atualização de bula. É uma revisão ética e científica que reconhece os impactos de um erro de interpretação que afastou mulheres de uma opção terapêutica segura quando bem indicada.
Vinte anos depois, o medo começa a dar lugar à informação. A ciência retoma seu papel como base da medicina — e devolve às mulheres o direito de escolher com autonomia, segurança e clareza.
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- ¹ Writing Group for the Women’s Health Initiative Investigators. Risks and Benefits of Estrogen Plus Progestin in Healthy Postmenopausal Women: Principal Results From the Women’s Health Initiative Randomized Controlled Trial. JAMA. 2002;288(3):321–333. doi:10.1001/jama.288.3.321. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/195120
- ² Manson JE, Chlebowski RT, Stefanick ML, Aragaki AK, Rossouw JE, Prentice RL, et al. Menopausal Hormone Therapy and Health Outcomes During the Intervention and Extended Poststopping Phases of the Women’s Health Initiative Randomized Trials. JAMA. 2013;310(13):1353–1368. doi:10.1001/jama.2013.278040. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/1744692
- ³ U.S. Food and Drug Administration. HHS Advances Women’s Health, Removes Misleading FDA Warnings on Hormone Replacement Therapy. FDA News Release, 10 de novembro de 2025. Disponível em: https://www.fda.gov/news-events/press-announcements/hhs-advances-womens-health-removes-misleading-fda-warnings-hormone-replacement-therapy
- ⁴ U.S. Department of Health and Human Services. FACT SHEET: FDA Initiates Removal of “Black Box” Warnings from Menopausal Hormone Replacement Therapy Products. 10 de novembro de 2025. Disponível em: https://www.hhs.gov/press-room/fact-sheet-fda-initiates-removal-of-black-box-warnings-from-menopausal-hormone-replacement-therapy-products.html
- ⁵ American College of Obstetricians and Gynecologists. ACOG President Says Label Change on Estrogen Will Increase Access to Hormone Therapy. News Release, 10 de novembro de 2025. Disponível em: https://www.acog.org/news/news-releases/2025/11/acog-president-says-label-change-on-estrogen-will-increase-access-to-hormone-therapy